segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Humanidade e o político - Schmitt

A unidade política pressupõe a possibilidade real de existência do inimigo e, com ela, uma outra unidade política coexistente. Destarte, enquanto houver Estado, sempre existirão no mundo vários Estados, não sendo possível haver um "Estado" mundial que abrange toda a terra e toda a humanidade. O mundo político é um pluriverso e não um universo. Nesse ponto, toda a teoria do Estado é pluralista, mesmo se noutro sentido que não aquele da teoria pluralista intra-estatal (...). Por essência, a unidade política não pode ser universal no sentido de uma unidade abrangendo toda a humanidade e toda a terra. Se os diversos povos, religiões, classes e agrupamentos humanos da terra estiverem todos tão unidos, de modo que se torne impossível e inimaginável um combate entre eles; se, ademais, também dentro de um império abragendo toda a terra, realmente for descartada para sempre uma guerra civil, mesmo como possibilidade; e se, assim, cessar a distinção entre amigo e inimigo, mesmo como pura eventualidade - então haveria tão-somente concepção de mundo, cultura, civilização, economia, moral, Direito, arte, entretenimento, etc. livres de política, mas não haveria nem política nem Estado. Desconheço se tal situação da terra e da humanidade sucederá e quando o seria. Por enquanto, não o há. Seria uma ficção desleal supô-lo como existente e seria um engano, rapidamente solucionável, acreditar, já que uma guerra entre potências, hoje, facilmente se converte numa "guerra mundial", que o término dessa guerra representaria, por conseguinte, a "paz mundial" e, assim, aquele idílico estágio final da despolitização completa e definitiva.

A humanidade como tal não pode conduzir a guerra alguma, pois não possui um inimigo, pelo menos não neste planeta. O conceito de humanidade exclui o conceito de inimigo, porque o inimigo também não deixa de se apresentar como ser humano e aí não reside nenhuma diferenciação específica. O facto de guerras serem feitas em nome da humanidade não é refutação alguma dessa simples verdade, senão que tem apenas um sentido político especialmente intenso. Quando um Estado combate o seu inimigo político em nome da humanidade, isso não constitui uma guerra da humanidade, e sim uma guerra, para a qual um determinado Estado procura de se apropriar de um conceito universal perante o seu adversário bélico, a fim de se identificar com esse conceito (às custas do adversário), da mesma forma como se abusa dos conceitos de paz, justiça, progresso, civilização com o objectivo de vindicá-los para si e de destituir o inimigo desses conceitos. A "humanidade" é um instrumento ideológico especialmente útil para expansões imperialistas, sendo, na sua forma ético-humanitária, um veículo específico do imperialismo económico. Para tanto se aplica, com uma simples modificação, uma frase cunhada por Proudhon: quem diz humanidade, pretende enganar. Portar o nome de "humanidade", referir-se à humanidade, confiscar essa palavra, tudo isso poderia - uma vez que não se podem portar tais nomes sublimes sem determinadas consequências - manifestar tão-só a terrível exigência de que o inimigo seja destituído da qualidade de ser humano, de que seja declarado hors-la-loi e hors l'humanité e, assim, de que se deva levar a guerra até a extrema desumanidade.