quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Poder como instrumento da ordem - Soares Martínez

A ordem postula um poder que assegure a sua integridade e a sua continuidade. Pelo menos nas sociedades de homens, cujas tentações no sentido da desobediência são bem conhecidas. Só numa cidade habitada por anjos se conceberia que a ordem fosse mantida sem que tivesse de recorrer-se a um poder. Os anjos precisariam de conhecer as posições que coubessem a cada um no conjunto. Mas haviam de respeitá-las. Os homens, embora aceitando, em abstracto, a ordem e as posições que implica, porque a julgam necessária, constantemente cedem à tentação de, em concreto, ao sabor dos seus interesses circunstanciais, procurarem alterar essa mesma ordem, abandonar as posições que lhes cabem e conquistar outras, em detrimento dos associados e do próprio equilíbrio social. Por isso, os mesmos homens, reconhecendo que assim é, quando imaginam uma ordem, ou sentem a necessidade dela, logo tratam de criar, ou de aceitar também, um poder posto ao serviço dessa ordem.

Assim, o poder tem de ser entendido como instrumento da ordem social. Não obstante, não tem faltado quem, impressionado por um vicioso uso do poder, tenha visto nele um agressor da ordem social. Esta atitude idealista, de desencanto originado na contemplação dos abusos dos poderosos, merece toda a compreensão. Mas também não será admissível que um ser, que qualquer realidade, se defina através das suas manifestações patológicas. Por mais frequentes que se mostrem essas manifestações. O poder agressor da ordem social há-de estar sempre inquinado de ilegitimidade, pelo exercício desviado da respectiva função. A ideia de poder implica legitimidade. E o poder legítimo não se conceberá, por definição, por natureza, senão como instrumento da ordem social.

Aliás, mesmo o poder ilegítimo, por ofender a ordem social e, com ela, a justiça, ainda poderá ser entendido, apesar de tudo, como preferível ao vazio do poder, à ausência de qualquer poder. Ao menos enquanto as ofensas da ordem e da justiça se não apartem de todo e qualquer sentido lógico e teleológico. Porquanto o respeito de qualquer sentido, embora falso, injusto e imoral, por parte do poder, ainda salvaguarda, ao menos, as exigências de certeza. Quando as sociedades se subordinam a um poder que ofende a justiça, mas conseguem conhecer os fins que ele visa, ainda poderão manter uma base de certeza. Sabem com o que contam. E essa certeza, mesmo desligada de sentido de justiça, será preferível a anarquia, que não salvaguarda nem a justiça nem a certeza. Quando, porém, além de injusto, o poder se torna também incerto, pela ignorância ou pelo arbítrio dos governantes, esse poder torna-se apenas aparente. E só essa aparência poderá levar a crer que não se caiu na anarquia, «le pire des états», no dizer de Bossuet. Liga-se frequentemente a ideia de anarquia ao exercício ilimitado, incondicionado, da liberdade, ou da falsa liberdade, de todos. Mas trata-se de uma visão utópica. Nunca se conheceram situações reais de semelhante tipo. As situações que têm sido qualificadas como anárquicas caracterizaram-se sempre pelo exercício ilimitado, incondicionado, da liberdade, ou da falsa liberdade, de alguns, em detrimento de quase todos. Porque a generalidade dos homens não têm capacidade para viver tais situações, a não ser como vítimas. Ora quando se conserva uma aparência de poder, mas desligado da prossecução da justiça, e incapaz mesmo de assegurar condições de certeza na própria injustiça está-se em presença de uma situação anárquica, a despeito das aparências. Os governantes formais estarão a exercer uma liberdade, ou uma falsa liberdade, ilimitada e incondicionada, em detrimento de toda a sociedade e dos seus membros. Bem poderá qualificar-se essa situação como anárquica.

Insistir-se-á, pois, em que o poder, inseparável da legitimidade de exercício, constitui, por natureza, por essência, o instrumento da ordem social. E, consequentemente, será benéfico para a sociedade.
Pedro Soares Martínez (2003). Filosofia do Direito (3ª Edição), Capítulo IV.