sábado, 22 de agosto de 2020

Revolução sexual - Sorokin

Pitirim A. Sorokin foi um sociólogo russo exilado que procurou estabelecer uma relação entre a degradação da moralidade sexual e a degradação da sociedade como um todo. Na obra "The American Sex Revolution", publicada em 1956, descreve a crescente sexualização da cultura americana à época na literatura, pintura, escultura, música, imprensa, publicidade, ciência, ética, religião, direito, política, entre outros (v. Capítulo II); e as suas possíveis consequências.

Mostrando preocupação com esta tendência, afirma:
Não é possível uma sociedade respeitadora da lei e moralmente forte quando um grande número dos seus membros são niilistas egoístas preocupados com prazer. Inevitavelmente, tais homens e mulheres entrarão em conflito uns com os outros, e serão conduzidos a uma violação crónica de imperativos morais e legais e à contínua transgressão dos interesses vitais uns dos outros. Tal resulta num enfraquecimento progressivo da ordem legal e moral existente, e numa guerra permanente entre os membros da colectividade que procuram a maior parcela possível de posses materiais e gratificações. Neste conflito a ordem estabelecida da sociedade é repetidamente quebrada; os padrões de conduta são cada vez mais trespassados, e, em última análise, perde a sua autoridade e controlo sobre o comportamento individual. A sociedade deriva mais e mais em direcção a um estado de anarquia moral em que todos se consideram legisladores e juízes com direito a manipular todos os padrões morais e legais como bem entendem.
Pitirim A. Sorokin (1956), The American Sex Revolution, Capítulo IV. Tradução própria.

E chega a concluir:
A anarquia sexual e a anarquia política e social são demónios gémeos. Embora um possa aparecer antes do outro, estão mutuamente inter-relacionados e são interdependentes.
Pitirim A. Sorokin (1956), The American Sex Revolution, Capítulo IV. Tradução própria.

Entre os exemplos desta relação entre a instabilidade social e a degradação da moralidade sexual, refere o caso russo, após a Revolução de Outubro, em 1917:
Sem dúvida mais esclarecedora é a tentativa radical dos soviéticos eliminarem a monogamia “capitalista” de modo a consagrar a liberdade sexual completa como base do regime económico e social comunista.

Durante a primeira fase da revolução, os seus líderes tentaram deliberadamente destruir o casamento e a família. O amor livre era glorificado com a teoria oficial do “copo de água”: se uma pessoa tem sede, dizia o partido, não importa que copo utiliza para satisfazer a sua sede; é igualmente irrelevante como satisfaz o seu apetite sexual. A distinção legal entre casamento e sexo casual foi abolida. A lei comunista mencionava apenas “contratos” entre homens e mulheres para a satisfação dos seus desejos, seja por um período definido ou indefinido, – um ano, um mês, uma semana ou até mesmo uma única noite. Podia-se casar e divorciar quantas vezes se desejasse. Marido e esposa podiam obter um divórcio sem que o outro fosse notificado. Não era sequer necessário que os “casamentos” fossem registados. A bigamia e a poligamia eram permitidas de acordo com a nova disposição. O aborto foi facilitado em instituições do estado. Relações antes do casamento eram elogiados, e relações fora do casamento eram consideradas normais.

O velho teste pragmático: “Pelos seus frutos, os conhecereis”, dá uma resposta à questão se a liberdade sexual foi útil.

Em poucos anos, bandos de crianças selvagens e sem-abrigo tornaram-se uma ameaça real à própria União Soviética. Milhões de vidas, especialmente de raparigas jovens, foram destruídas; o número de divórcios disparou, tal como o número de abortos. Os ódios e conflitos entre pares poligâmicos e poliândricos cresceram rapidamente, – assim como psiconeuroses. O trabalho nas fábricas nacionalizadas abrandou.

O resultado final foi de tal forma chocante que o governo foi forçado a reverter a sua política. A propaganda da teoria do “copo de água” foi declarada contra-revolucionária, e foi substituída por uma glorificação oficial da castidade antes do casamento e da santidade do casamento. O aborto foi proibido, excepto, a partir de 1945, em condições excepcionais relativas à saúde da mãe ou outras considerações semelhantes. A liberdade de divórcio foi radicalmente restringida; pelo decreto de 14 de Julho de 1944, passou a ser impossível para a maioria dos cidadãos. O ciclo está agora completo, e um ligeiro relaxamento desta repressão sexual demasiado severa está a fazê-lo moderadamente normal. A Rússia soviética hoje tem uma família e casamento mais monogâmicos, estáveis e vitorianos que a maioria dos países ocidentais.

Considerando que todo o ciclo ocorre sob um único regime, a experiência é bastante informadora. Mostra claramente as consequências destrutivas de liberdade sexual ilimitada, especialmente no que toca ao crescimento criativo. No período entre 1918 e 1926, quando essa liberdade proliferou, o governo soviético estava preocupado com trabalho destrutivo, e a nação russa encarcerada não foi capaz de alcançar muito na tarefa de reorganização positiva ou de crescimento cultural criativo.
 
A partir de 1930, quando a tarefa de restringir a liberdade sexual foi essencialmente concluída, as actividades destrutivas do governo começaram a ser reduzidas, e o trabalho construtivo ganhou força. Tornaram-se mais proveitosos os esforços para a industrialização e o crescimento económico, para a construção das forças armadas, para o rápido desenvolvimento das escolas, dos hospitais, de institutos de pesquisa científica, para a promoção das ciências naturais e até das ciências sociais, e das humanidades. Daqui seguiu-se um renascimento das belas-artes e literatura, um notável decréscimo da perseguição anterior à religião, e uma restauração e glorificação dos grandes valores nacionais da Rússia, que tinham sido vilificados no período anterior pelo regime comunista."
Pitirim A. Sorokin (1956), The American Sex Revolution, Capítulo V. Tradução própria.

domingo, 16 de agosto de 2020

Origem dos governos - Gama e Castro

Todos aqueles que têm escrito sobre a origem dos governos falam de um estado do género humano anterior ao da sociedade, em que os homens, vivendo solitários e individualmente como os animais, satisfaziam, como podiam, as suas necessidades, sem relações ou comércio permanente com os outros indivíduos da sua espécie: e este estado a que dão o nome de selvagem, chamam o estado natural e primitivo do homem. Mas houve por ventura alguma época em que as coisas se passassem realmente desta maneira? Quanto mais profundamente reflectimos sobre a natureza do homem, sobre a sua organização, sobre as suas faculdades e até sobre os seus alimentos, tanto menos dispostos no sentimos a admitir esta extravagante hipótese.
Gama e Castro segue exemplificando como a atracção dos sexos, a dependência do homem na infância e a alimentação do homem evidenciam que sempre viveu em sociedade. E depois continua:
Quem ponderar reflectidamente todas estas circunstâncias – quem reflectir que o dom da palavra, atributo exclusivo da espécie humana, seria absolutamente sem objecto, na hipótese da dispersão dos indivíduos, assentará comigo que, por mais que a imaginação se atormente, nunca é possível ir dar na história do mundo com o momento da sociedade constituindo-se, mas sempre com a sociedade constituída.
E esta observação é mais importante do que parece: porque, se se admite por verdadeira, tudo quanto se nos diz de pactos e convenções anteriores à formação das primeiras sociedades, é puramente imaginário. Tais pactos e convenções nunca tiveram lugar. As relações entre os diferentes membros da sociedade não se fizeram, apareceram já feitas

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Confusão entre sujeito e objecto - Rosmini

[A] natureza dupla (por assim dizer) do sujeito humano, por essência inteligente e consequentemente por essência na posse de um objecto universal do seu entendimento, tem sido muitas vezes negligenciada. Este engano, que confunde o objecto essencial para o sujeito inteligente com o próprio sujeito, causou vários erros. Aquilo que pertence apenas ao objecto é atribuído ao sujeito, e vice-versa aquilo que pertence ao objecto é atribuído ao sujeito. Esta incorrecção deu origem a dois sistemas éticos erróneos, aos quais, me parece, todos os erros do ensinamento moral podem ser, em última análise, reduzidos.

O primeiro sistema erróneo atribui ao sujeito aquilo que pertence ao objecto. Já indiquei como o objecto (que, no meu entendimento, é a lei moral suprema) está dotado de características divinas, como sejam a imutabilidade, a eternidade, a universalidade, a necessidade. Todas estas características foram erradamente atribuídas ao sujeito humano, que desse modo foi deificado. Aqueles que defendem este sistema falam entusiasticamente do que é divino no ser humano, e fazem a criatura humana uma lei por si mesma. Kant chamou a este sistema de autonomia, isto é, "lei de si mesmo".

O segundo sistema erróneo cai no outro extremo, atribuindo ao objecto, isto é, à lei moral, aquilo que pertence ao sujeito. O ser humano é mutável, temporal, limitado, contingente, e são feitos todos os esforços para atribuir estas características à lei moral. Aqueles que defendem este sistema querem fazer crer que a lei está sujeita a mudanças contínuas, tal como o clima, os costumes, a educação ou as raças mudam. Tal sistema destrói toda a lei moral, e tem sido convictamente ensinado e difundido juntamente com a filosofia sensista que lhe deu origem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Liberdade cristã

O conceito de liberdade tem vários significados. Pode referir-se à capacidade de fazer o que se deseja, à ausência de interferência externa na acção ou à independência face ao arbítrio e boa vontade de outrem. Os significados são tantos que é comum o termo surgir equivocado no debate político.

Um conceito de liberdade hoje relativamente esquecido é a liberdade na acepção cristã. Esta refere-se, genericamente, à capacidade de não pecar ou, fugindo da linguagem teológica, à capacidade de fazer o bem. Quem não é livre, portanto, é escravo do pecado ou de algum vício. 

Esta noção de liberdade tem origem bíblica:
"Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado."
Jo 8:34. Tradução Difusora Bíblica, de 2002. 

"É isto o que devemos saber: o homem velho que havia em nós foi crucificado com Ele, para que fosse destruído o corpo pertencente ao pecado; e assim não somos mais escravos do pecado mas vivos para Deus, em Cristo Jesus. Portanto, que o pecado não reine mais no vosso corpo mortal, de tal modo que obedeçais às suas paixões. Não entregueis os vossos membros, como armas da injustiça, ao serviço do pecado. Pelo contrário, entregai-vos a Deus, como vivos de entre os mortos, e entregai os vossos membros, como armas da justiça, ao serviço de Deus. Pois o pecado não terá mais domínio sobre vós, uma vez que não estais sob a Lei, mas sob a graça. 
Então? Vamos pecar, porque não estamos sob a Lei, mas sob a graça? De modo nenhum! Não sabeis que, se vos entregais a alguém, obedecendo-lhe como escravos, sois escravos daquele a quem obedeceis, quer seja do pecado que leva à morte, quer da obediência que leva à justiça? 
Demos graças a Deus: éreis escravos do pecado, mas obedecestes de coração ao ensino que vos foi transmitido como norma de vida. E libertos do pecado, tornastes-vos escravos da justiça. 
Estou a falar em termos humanos, devido à fraqueza da vossa carne. Do mesmo modo que entregastes os vossos membros, como escravos, à impureza e à desordem, para viverdes na desordem, entregai agora também os vossos membros como escravos à justiça, para viverdes em santidade. 
Quando éreis escravos do pecado, éreis livres no que toca à justiça. Afinal, que frutos produzíeis então? Coisas de que agora vos envergonhais, porque o resultado disso era a morte. 
Mas agora, que estais libertos do pecado e vos tornastes servos de Deus, produzis frutos que levam à santificação, e o resultado é a vida eterna. É que o salário do pecado é a morte; ao passo que o dom gratuito que vem de Deus é a vida eterna, em Cristo Jesus, Senhor nosso." 
Rm 6. Tradução Difusora Bíblica, de 2002. 

"Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão."
Gl 5:1. Tradução Difusora Bíblica, de 2002.

"Prometem-lhes a liberdade, quando eles próprios são escravos da corrupção, pois é-se escravo daquele por quem nos deixamos vencer." 
2Pe 2:19. Tradução Difusora Bíblica, de 2002.

Sto. Agostinho também se refere explicitamente a esta noção de liberdade:

"o bom, mesmo que reduzido à escravidão, é livre: ao passo que o mau, mesmo que seja rei, é escravo - não de um homem mas, o que é mais grave, de tantos senhores quanto vícios. A estes vícios se refere a Sagrada Escritura quando diz: «Quando alguém se deixa vencer por alguma coisa, torna-se dela escravo» (2Pe 2:19)"
Santo Agostinho, Cidade de Deus, IV. 3. Tradução Calouste Gulbenkian, de 1996. O último verso é também citado atrás, mas com uma tradução diferente.


Igualmente para Sto. Anselmo:
"Uma vez que o livre-arbítrio divino e aquele dos bons anjos não podem pecar, ser capaz de pecar não pertence à definição de livre-arbítrio. Além disso, a capacidade de pecar não é nem liberdade nem parte da liberdade. (...) Uma vez que a liberdade é uma capacidade, a liberdade da vontade é a capacidade de preservar a rectidão da vontade tendo por fim a própria rectidão."
S. Anselmo. De Libertate Arbitrii (1,3). Retirado de Santo Anselmo, Davies, Evans. (1998). Anselm of Canterbury: The Major Works. Tradução própria.

E para S. Tomás:
"Por isso, que o livre-arbítrio possa escolher coisas diversas, guardada a sua ordenação para o fim, isso pertence à perfeição da sua liberdade. Porém, que escolha algo afastando-se da ordenação para o fim, o que é pecar, isso pertence ao defeito da liberdade. É maior, portanto, a liberdade de arbítrio nos anjos, que não podem pecar, do que em nós, que podemos."


E o mesmo se diz nos tempos modernos:
"A liberdade não consiste em fazer o que se quer, mas em ter o direito de se fazer o que se deve."