segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Máquinas de conquista de poder - Marcello Caetano

Os partidos começaram por ser dominados por grandes personalidades, por notáveis que os dirigiam e que de certo modo os incarnavam, sobrepondo-se quase sempre às próprias ideologias. (...) Mas, a pouco e pouco, as formações partidárias foram apu­rando as suas construções ideológicas e os seus programas e o eleitor deixou de escolher um homem que o represen­tasse para passar a escolher uma determinada política.

Esta transformação, que parecia ir ao encontro duma maior promoção do eleitor (...) passou a ser um factor de enfra­quecimento das assembleias e um elemento de pulveri­zação duma sociedade. Em primeiro lugar, baixou visi­velmente a qualidade dos deputados, e compreende-se que assim tenha acontecido: as personalidades mais inte­ligentes e mais fortes têm dificuldade em se submeter à disciplina e à construção doutrinária do partido, que é, normalmente, um produto medíocre, ditado pelos seus quadros burocráticos. (...) Acontece ainda, como já tivemos ocasião de ver, que não só o cidadão normal, o eleitor comum, está quase sempre longe das ideologias e dos sistemas políticos, como, hoje, as próprias ideologias, quer pelo materialismo indiferente a qualquer forma de ideal que tomou conta das sociedades modernas, quer pelo seu próprio fra­casso, perderam grande parte da sua capacidade de mobi­lização. Em que se transformaram então os partidos políticos? Os partidos políticos transformaram-se - e isto parece-me grave - em máquinas eleitorais, em aparelhos potentes lançados à conquista do poder, com vantagens para aqueles que “tecnicamente” estão melhor apetre­chados sobre os que melhor poderiam realizar o bem comum.

As máquinas de “conquista do poder” são autênticas “máquinas de guerra” que, após cada campanha eleitoral - após cada “batalha” - deixam um país completamente ferido e retalhado, indefinidamente à procura da sua unidade perdida. As vantagens que uma certa competição poderia trazer ao progresso das instituições e da vida duma sociedade passam para último lugar, perante a preocupa­ção prioritária da conquista do poder, e as oposições que ficam nos parlamentos depressa esquecem as suas fun­ções de representação nacional, de vigilância do uso dos poderes em conformidade com as leis estabelecidas, de colaboração no poder legislativo para, segundo o seu objectivo, se transformarem nos mais poderosos elementos de obstrução da acção governativa do seu próprio país.

Como vê, não me parece que a representação nacio­nal, através de formações pluripartidárias, possa contri­buir para que as Assembleias sejam compostas por ele­mentos qualificados, independentes, dedicados à coisa pública e integrados num processo de realização do bem comum, porque a realidade partidária, com todas as suas exigências próprias, se intromete constantemente entre os deputados e a Nação.
Marcello Caetano (1973), Conversas com Marcello Caetano, de António Alçada Baptista.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Classe dirigente alienada - Mosca

Em sociedades feudais, os elementos da classe dirigente estão geralmente espalhados entre os seus seguidores. Eles vivem em permanente contacto com eles e têm de ser, em certo sentido, os seus líderes naturais. Pode parecer surpreendente que na Idade Média, quando o barão estava sozinho no meio dos seus vassalos e os tratava duramente, estes não se aproveitassem da sua superioridade numérica para se libertar. Mas, na verdade, a coisa nem sempre era fácil, porque um grupo de pessoas, ainda que superior aos restantes em termos de energia e no uso de armas, estava sempre mais ou menos ligado ao destino do seu senhor. Mas, independente disso, outra consideração de grande importância não deve ser ignorada. O barão conhecia os seus vassalos pessoalmente. Ele pensava e sentia como eles. Tinha as mesmas superstições, os mesmos hábitos, a mesma língua. Era para eles um mestre, por vezes duro e arbitrário, mas era um homem que entendiam perfeitamente, com quem podiam partilhar conversa, à mesa do qual muitas vezes se sentavam, ainda que num lugar mais baixo, e com os quais por vezes se embriagavam. É preciso ser ignorante da psicologia das classes baixas para não compreender logo quantas coisas esta familiaridade, baseada numa educação semelhante, ou falta de educação se assim se preferir, permite tolerar e perdoar. (…)

Na Idade Média, as primeiras revoltas camponesas ocorreram não onde o feudalismo era mais duro, mas onde os nobres aprenderam a associar-se entre si, e a busca dos bons costumes e as cortes de amor começaram a desenvolver-se e os alienaram dos hábitos rústicos do castelo isolado. Mickiewicz faz sobre isto uma observação importante. Segundo este autor, os nobres polacos eram populares entre os camponeses enquanto viveram entre eles. Os camponeses sofriam da falta do pão que lhes era tirado da boca para que o seu senhor pudesse comprar cavalos e armas dispendiosas para caçar e para fazer a guerra contra os turcos e os russos. Mas quando a educação francesa foi introduzida entre a nobreza polaca, quando aprenderam a fazer bailes à moda de Versalhes e começaram a passar o seu tempo a dançar minuetos, os camponeses e a nobreza tornaram-se dois povos diferentes, e os camponeses deixaram de apoiar os nobres eficazmente nas suas guerras com estrangeiros no final do século XVIII.

O mesmo acontecia com a aristocracia celta na Irlanda. De acordo com Macaulay e outros historiadores, a antiga nobreza dos "O's" e dos "Mc's" era muito popular entre os camponeses, cujo trabalho dava ao líder do clã a sua rude e abundante mesa, e cujas filhas eram por vezes levadas para o seu harém rústico. Mas estes nobres eram considerados quase como membros da família, partilhavam com os camponeses, dizia-se, o sangue e certamente os hábitos e as ideias. Por outro lado, o senhor inglês, que substituiu o irlandês, era provavelmente mais moderado e, sem dúvida, mais temperado e correcto nas suas exigências. Ainda assim, era profundamente odiado. Era um estrangeiro na língua, religião e hábitos. Vivia longe, e mesmo quando residia na sua propriedade tinha adquirido o hábito de ficar isolado, não tinha contactos com os seus dependentes excepto quando estritamente necessário para a relação de mestre e súbdito. (…)

Mas suponhamos, ao invés vez, o que aconteceu na Rússia czarista. Aí, certamente, não havia diferenças raciais importantes entre nobres e camponeses, mas havia grandes diferenças de tipo social e, sobretudo, de costumes. A classe culta, por muito pobre ou rica que fosse, tinha adoptado a educação europeia. O resto da população conservava ideias e costumes asiáticos. Tchernichevski, um revolucionário russo dos anos 90 disse, referindo a possibilidade de uma revolta camponesa: "Ignorantes, cheios de preconceitos, e cegamente odiando todos os que abandonaram os primitivos modos russos [antipatia resultante de diferenças de tipo social], o povo não faz diferença entre indivíduos que se vestem à moda alemã [que tinham abandonado o costume russo e se vestiam de acordo com a moda europeia]. Tratava todos por igual, e não valorizava nem a ciência, nem a poesia, nem a arte. Isto iria demolir toda a nossa civilização.".
Gaetano Mosca (1896), Elementi di scienza politica, Capítulo IV. Tradução própria a partir da tradução inglesa: The Ruling Class (1939). McGraw-Hill Book Company.

sábado, 19 de dezembro de 2020

O Homem é um animal político - Aristóteles

Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer. O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem-estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias. Nenhum inimigo infligiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus actos. Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações. A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais, uma vez transformados em hábito, já não podem passar; são estes os mais deploráveis de todos, pois se deixaram chegar a um ponto tal em que se lhes tomou indispensável uma coisa que começou por ser apenas supérflua. Em vez de os desfrutar, tornam-se escravos do prazer; e, para cúmulo da desgraça, acabam por amar aquilo mesmo que os torna desgraçados. Atinge-se assim o cume da infelicidade: a degradação torna-se, de prazer, em condição natural; quando os vícios se transformam em hábito deixa de ser possível a aplicação de qualquer remédio.
A cidade, enfim, é uma comunidade completa, formada a partir de várias aldeias e que, por assim dizer, atinge o máximo de auto-suficiência. Formada a princípio para preservar a vida, a cidade subsiste para assegurar a vida boa. É por isso que toda a cidade existe por natureza, se as comunidades primeiras assim o foram. A cidade é o fim destas, e a natureza de uma coisa é o seu fim, já que, sempre que o processo de génese de uma coisa se encontre completo, é a isso que chamamos a sua natureza, seja de um homem, de um cavalo, ou de uma casa. Além disso, a causa final, o fim de uma coisa, é o seu melhor bem, e a auto-suficiência é, simultaneamente, um fim e o melhor dos bens.
Estas considerações evidenciam que uma cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver cidade, será um decaído ou sobre-humano, tal como o homem condenado por Homero como “sem família, nem lei, nem lar”; porque aquele é assim por natureza, está, além do mais, sedento de ir para a guerra, e é comparável à peça isolada de um jogo.
A razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza, conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra. Assim, enquanto a voz indica prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também atributo de outros animais (cuja natureza também atinge sensações da dor e de prazer e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado, serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto. É que, perante os outros seres vivos, o homem tem as suas peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o justo e o injusto; é a comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade.
Além disso, a cidade é por natureza anterior à família e a cada um de nós, individualmente considerado; é que o todo é, necessariamente, anterior à parte. Se o corpo como um todo é destruído, não haverá nem pé nem mão, excepto por homonímia, no sentido em que falamos de uma mão feita de pedra: uma mão deste género será uma mão morta; tudo é definido segundo a sua capacidade ou função. Ora, todas as coisas definem-se pela sua função e pelas suas faculdades; quando já não se encontram operantes não devemos afirmar que são a mesma coisa, mas apenas que têm o mesmo nome. É evidente que a cidade é, por natureza, anterior ao indivíduo, porque se um indivíduo separado não é auto-suficiente, permanecerá em relação à cidade como as partes em relação ao todo. Quem for incapaz de se associar ou que não sente essa necessidade por causa da sua auto-suficiência, não faz parte de qualquer cidade, e será um bicho ou um deus.
É decerto natural a tendência que existe em todos os homens para formar uma comunidade deste género, mas quem primeiro a estabeleceu foi causa de grandes benefícios. Tal como o homem é o melhor dos animais quando atinge o seu pleno desenvolvimento, do mesmo modo, quando afastado da lei e da justiça, será o pior. A injustiça armada é, efectivamente, a mais perigosa; o homem nasceu com armas que devem servir a sabedoria prática e a virtude mas que também podem ser usadas para fins absolutamente opostos. É por isso que o homem sem virtude é a criatura mais ímpia e selvagem, e a mais grosseira de todas no que diz respeito aos prazeres do sexo e da alimentação. A justiça é própria da cidade, já que a justiça é a ordem da comunidade de cidadãos e consiste no discernimento do que é justo.
Aristóteles (Séc. IV a.C.). Política. Tradução de António Campelo Amaral e Carlos Gomes, para a Editora Vega em 1998.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Necessidades artificiais - Séneca

Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer. O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem-estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias. Nenhum inimigo infligiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus actos. Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações. A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais, uma vez transformados em hábito, já não podem passar; são estes os mais deploráveis de todos, pois se deixaram chegar a um ponto tal em que se lhes tomou indispensável uma coisa que começou por ser apenas supérflua. Em vez de os desfrutar, tornam-se escravos do prazer; e, para cúmulo da desgraça, acabam por amar aquilo mesmo que os torna desgraçados. Atinge-se assim o cume da infelicidade: a degradação torna-se, de prazer, em condição natural; quando os vícios se transformam em hábito deixa de ser possível a aplicação de qualquer remédio.
Séneca (c. 65). Cartas a Lucílio, 39. Tradução de J.A. Segurado e Campos, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2004.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Axioma do liberalismo - Jean-Claude Michéa

O axioma base do liberalismo político é bem conhecido. Se é a pretensão de certos indivíduos (ou de associações de indivíduos, tal como a Igreja) deterem a verdade sobre o Bem a causa fundamental que leva os homens a confrontarem-se violentamente, então os membros de uma sociedade só poderão viver em paz uns com os outros se o Poder encarregue de organizar a sua coexistência for filosoficamente neutro; isto é, se ele se abstém, por princípio, de impor aos indivíduos esta ou aquela concepção de vida bem vivida. Numa sociedade liberal cada um é, portanto, livre de adoptar o estilo de vida que julga ser o mais apropriado à sua concepção de dever (se é que tem uma) ou de felicidade; sobre a única reserva, naturalmente, que estas escolhas sejam compatíveis com a liberdade correspondente dos outros. Esta última exigência supõe a existência – acima desses indivíduos empenhados separadamente na sua procura por uma vida bem vivida e pela felicidade – de uma instância responsável por harmonizar as liberdades concorrentes a cada momento, e com justificação, por este motivo, para apenas limitar-lhes o campo de acção definindo um conjunto de regras comuns. Esta instância é o Direito (cuja aplicação efectiva é, nesta óptica, a única função essencial do Estado). (…)
A “teoria da justiça” na qual se fundamenta a nova autoridade do Direito tem, na verdade, pouco que ver com aquela que a filosofia tradicional havia considerado sobre o mesmo nome. De facto, ela não se preocupa mais em definir Ideias ou a capturar Essências; isto é, em falar em nome de uma qualquer “Verdade”, seja qual for o estatuto metafísico desta última. Mais que uma “teoria da justiça”, conviria falar em vez de uma teoria de ajustamento. Com efeito, trata-se sobretudo de desenvolver as combinações institucionais mais eficazes, e assim de optimizar um sistema de pesos e contrapesos (checks and balances, como dizem os filósofos anglo-saxónicos) que permitirá manter o equilíbrio de liberdades rivais impondo o mínimo de exigências (…). Uma teoria liberal da justiça não deve, portanto, comprometer-se, por princípio, com nenhuma reflexão filosófica particular sobre qual poderá ser a melhor forma de viver. Ela limita-se, pelo contrário, a definir as condições técnicas de um simples modus vivendi. Aquilo que é necessário impor a um conjunto de partículas elementares em movimento perpétuo se se pretende reduzir ao máximo os riscos de choques e colisões (o que equivale, em suma, a atribuir ao Direito liberal uma função comparável àquela do Código da Estrada). (…)
Como vimos, a autoridade do Direito liberal só é, de facto, legítima porque ela se limita a arbitrar o movimento browniano de liberdades concorrentes, sem nunca apelar a outros critérios para lá das exigências da própria liberdade; as quais se resumem, fundamentalmente, apenas à necessidade de não causar dano a outrem. (…) Com que direito, de facto, pode uma sociedade liberal, por exemplo, impedir um indivíduo de se magoar a si próprio (…)? Ou, colocando-nos no plano da relação de indivíduos entre si, com que fundamento decidir que o facto de se criticar uma religião (ou de a ridicularizar) não lesa o exercício da liberdade, correctamente entendida, dos crentes? Em que medida, por outro lado, os ensinamentos desta ou daquela religião sobre o estatuto da mulher ou a natureza da homossexualidade não implicam um ataque directo aos “direitos das minorias”? Perante estas questões, que se multiplicam ao infinito, o Direito liberal está obrigatoriamente em grandes dificuldades. Assumindo que, para justificar a sua arbitragem, se deva coibir de se apoiar em concepções metafísicas particulares (por exemplo numa determinada concepção de salvação da alma, de decência comum ou de dignidade humana), é, de facto, inevitável, devido à evolução perpétua dos costumes (processo que os Modernos acordaram com unanimidade de chamar “natural”), que se reencontre confrontado com um número crescente de “questões fracturantes”, manifestamente impossíveis de resolver de forma coerente no quadro estritamente técnico em que se colocou. A consequência lógica é, portanto, que enverede progressivamente numa via de regulamentação em massa de todos os comportamentos possíveis e imagináveis. (…)
É, no entanto, de prever que haverá sempre outros indivíduos – ou associações de indivíduos – que consideram que cada um destes novos “avanços do Direito” atentam contra a sua liberdade, na medida em que causam dano à sua sensibilidade ou à sua “auto-estima” (que constituem, ao momento e de acordo com a opinião comum, uma parte integrante dessa liberdade). Assim, no longo prazo, é inevitável que este processo de extensão infinita dos direitos individuais (ou da liberalização dos costumes) acabe por desencadear, sobre o efeito da velha dialéctica acção-reacção, o surgimento de uma nova guerra de todos contra todos. (…) E porque a neutralidade proclamada do Direito liberal o priva, de antemão, de todo o suporte filosófico sério para decidir entre todas as pretensões contraditórias, não tem outra alternativa à sua disposição, no final de contas, que registar passivamente a variação incessante das diferentes relações de força que actuam sobre a opinião e a sociedade. (…) Certamente, o clima estranho que se instala em consequência disto, a favor destas cruzadas jurídicas cada vez mais numerosas (prazeres perversos da delação, da vigilância generalizada de uns pelos outros, multiplicação, de repente inevitável, de censuras, de controlos e de proibições), parece estar nos antípodas do mundo agradável e tolerante que sonhavam os fundadores do liberalismo[.]

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Humanidade e o político - Schmitt

A unidade política pressupõe a possibilidade real de existência do inimigo e, com ela, uma outra unidade política coexistente. Destarte, enquanto houver Estado, sempre existirão no mundo vários Estados, não sendo possível haver um "Estado" mundial que abrange toda a terra e toda a humanidade. O mundo político é um pluriverso e não um universo. Nesse ponto, toda a teoria do Estado é pluralista, mesmo se noutro sentido que não aquele da teoria pluralista intra-estatal (...). Por essência, a unidade política não pode ser universal no sentido de uma unidade abrangendo toda a humanidade e toda a terra. Se os diversos povos, religiões, classes e agrupamentos humanos da terra estiverem todos tão unidos, de modo que se torne impossível e inimaginável um combate entre eles; se, ademais, também dentro de um império abragendo toda a terra, realmente for descartada para sempre uma guerra civil, mesmo como possibilidade; e se, assim, cessar a distinção entre amigo e inimigo, mesmo como pura eventualidade - então haveria tão-somente concepção de mundo, cultura, civilização, economia, moral, Direito, arte, entretenimento, etc. livres de política, mas não haveria nem política nem Estado. Desconheço se tal situação da terra e da humanidade sucederá e quando o seria. Por enquanto, não o há. Seria uma ficção desleal supô-lo como existente e seria um engano, rapidamente solucionável, acreditar, já que uma guerra entre potências, hoje, facilmente se converte numa "guerra mundial", que o término dessa guerra representaria, por conseguinte, a "paz mundial" e, assim, aquele idílico estágio final da despolitização completa e definitiva.

A humanidade como tal não pode conduzir a guerra alguma, pois não possui um inimigo, pelo menos não neste planeta. O conceito de humanidade exclui o conceito de inimigo, porque o inimigo também não deixa de se apresentar como ser humano e aí não reside nenhuma diferenciação específica. O facto de guerras serem feitas em nome da humanidade não é refutação alguma dessa simples verdade, senão que tem apenas um sentido político especialmente intenso. Quando um Estado combate o seu inimigo político em nome da humanidade, isso não constitui uma guerra da humanidade, e sim uma guerra, para a qual um determinado Estado procura de se apropriar de um conceito universal perante o seu adversário bélico, a fim de se identificar com esse conceito (às custas do adversário), da mesma forma como se abusa dos conceitos de paz, justiça, progresso, civilização com o objectivo de vindicá-los para si e de destituir o inimigo desses conceitos. A "humanidade" é um instrumento ideológico especialmente útil para expansões imperialistas, sendo, na sua forma ético-humanitária, um veículo específico do imperialismo económico. Para tanto se aplica, com uma simples modificação, uma frase cunhada por Proudhon: quem diz humanidade, pretende enganar. Portar o nome de "humanidade", referir-se à humanidade, confiscar essa palavra, tudo isso poderia - uma vez que não se podem portar tais nomes sublimes sem determinadas consequências - manifestar tão-só a terrível exigência de que o inimigo seja destituído da qualidade de ser humano, de que seja declarado hors-la-loi e hors l'humanité e, assim, de que se deva levar a guerra até a extrema desumanidade. 

Fuga do político - Schmitt

Um povo politicamente existente não tem a liberdade, de modo algum, de se esquivar a esta diferenciação fatídica [entre amigo e inimigo] por meio de proclamações conjuratórias. Se uma parcela do povo declara não conhecer mais inimigo algum, ela se coloca, consequentemente e pela situação da questão, do lado dos inimigos e os ajuda; porém, com isso, não se suprime a distinção entre amigos e inimigos. Se os cidadãos de um determinado Estado afirmam sobre si que, pessoalmente, não possuem inimigos, isso não tem nada a ver com essa questão, pois uma pessoa em particular não tem inimigos políticos; com tais declarações, ela pode, no máximo, querer dizer que tenciona retirar-se da colectividade política, à qual pertence conforme a sua existência nela, e viver somente como um particular. Ademais, seria um erro crer que um povo em particular, mediante uma declaração de amizade a todo o mundo ou mediante o facto de que se vai desarmar voluntariamente, possa afastar a distinção entre amigos e inimigos. Dessa maneira não se despolitiza o mundo, nem se o coloca num estado de pura moralidade, pura juridicidade ou pura economia. Se um povo teme os incómodos e o risco de uma existência política, haverá, sem dúvida, um outro povo que lhe ajudará com esses incómodos ao assumir a sua "protecção contra inimigos externos" e, com isso, assume também o domínio político; assim, em virtude da eterna relação entre protecção e obediência, é o protector que determinará o inimigo.

Amigo e inimigo - Schmitt

A diferenciação especificamente política, à qual podem ser relacionadas as acções e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo, fornecendo uma definição conceptual no sentido de um critério, não como definição exaustiva ou expressão de conteúdo. Na medida em que não é derivável de outros critérios, ela corresponde para o político aos critérios relativamene autónomos de outras antíteses: bom e mau no moral; belo e feio no estético, etc. Em todo o caso, ela é autónoma, não no sentido de um novo âmbito próprio, e sim no modo de que nem se fundamenta numa daquelas outras antíteses ou em várias delas, nem pode ser relacionada a elas. Se a antítese entre bom e mau não é idêntica sem dificuldades e de forma simples àquela entre belo e feio ou entre útil e prejudicial e não lhe pode ser directamente relacionada, então a antítese entre amigo e inimigo pode ser ainda menos confundida ou mesclada com uma daquelas outras antíteses. A diferenciação entre amigo e inimigo tem o propósito de caracterizar o extremo grau de intensidade de uma união ou separação, de uma associação ou desassociação, podendo existir na teoria e na prática, sem que, simultaneamente, tenham que ser empregadas todas aquelas diferenciações morais, estéticas, económicas ou outras. O inimigo polítco não precisa de ser moralmente mau, não precisa de ser esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como concorrente económico e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é precisamente o outro, o desconhecido e, para a sua essência, basta que ele seja, num sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, num caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser decididos nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro "não envolvido" e, destarte, "imparcial". 

(...)

[I]nimigo não é o concorrente ou o adversário em geral. Tampouco é inimigo o adversário privado a quem se odeia por sentimentos de antipatia. Inimigo é apenas um conjunto de pessoas em combate ao menos eventualmente, i.e. segundo a possibilidade real e que se defronta com um conjunto idêntico. Inimigo é somente o inimigo público, pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas, especialmente a todo um povo, se torna, por isso, público. Inimigo é hostis, não inimicus em sentido amplo; polemios, não echtros. A língua alemã, assim como outras línguas, não diferencia o "inimigo" privado e o político, de modo que se fazem possíveis muitos equívocos e falsificações. O trecho muito citado "amai os vossos inimigos" (Mt 5:44; Lc 6:27) significa "diligite inimicos vestros", "agapate tous echtrous hymon", e não: diligite hotes vestros; não se fala do inimigo político. Mesmo na guerra milenar entre o Cristianismo e o Islamismo, nunca ocorreu a um cristão, por amor aos sarracenos ou aos turcos, ter que entregar a Europa ao Islamismo, em vez de defendê-la. Não é preciso odiar pessoalmente o inimigo no sentido político e só tem sentido amar o seu "inimigo", i.e., o seu adversário, na esfera privada. Aquela passagem bíblica não diz respeito à contraposição política, assim como, por exemplo, não tem a pretensão de suprimir as oposições entre bom e mau ou belo e feio. Sobretudo, ela não significa que se deve amar os inimigos do seu povo e apoiá-los contra o seu próprio povo.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Poder como instrumento da ordem - Soares Martínez

A ordem postula um poder que assegure a sua integridade e a sua continuidade. Pelo menos nas sociedades de homens, cujas tentações no sentido da desobediência são bem conhecidas. Só numa cidade habitada por anjos se conceberia que a ordem fosse mantida sem que tivesse de recorrer-se a um poder. Os anjos precisariam de conhecer as posições que coubessem a cada um no conjunto. Mas haviam de respeitá-las. Os homens, embora aceitando, em abstracto, a ordem e as posições que implica, porque a julgam necessária, constantemente cedem à tentação de, em concreto, ao sabor dos seus interesses circunstanciais, procurarem alterar essa mesma ordem, abandonar as posições que lhes cabem e conquistar outras, em detrimento dos associados e do próprio equilíbrio social. Por isso, os mesmos homens, reconhecendo que assim é, quando imaginam uma ordem, ou sentem a necessidade dela, logo tratam de criar, ou de aceitar também, um poder posto ao serviço dessa ordem.

Assim, o poder tem de ser entendido como instrumento da ordem social. Não obstante, não tem faltado quem, impressionado por um vicioso uso do poder, tenha visto nele um agressor da ordem social. Esta atitude idealista, de desencanto originado na contemplação dos abusos dos poderosos, merece toda a compreensão. Mas também não será admissível que um ser, que qualquer realidade, se defina através das suas manifestações patológicas. Por mais frequentes que se mostrem essas manifestações. O poder agressor da ordem social há-de estar sempre inquinado de ilegitimidade, pelo exercício desviado da respectiva função. A ideia de poder implica legitimidade. E o poder legítimo não se conceberá, por definição, por natureza, senão como instrumento da ordem social.

Aliás, mesmo o poder ilegítimo, por ofender a ordem social e, com ela, a justiça, ainda poderá ser entendido, apesar de tudo, como preferível ao vazio do poder, à ausência de qualquer poder. Ao menos enquanto as ofensas da ordem e da justiça se não apartem de todo e qualquer sentido lógico e teleológico. Porquanto o respeito de qualquer sentido, embora falso, injusto e imoral, por parte do poder, ainda salvaguarda, ao menos, as exigências de certeza. Quando as sociedades se subordinam a um poder que ofende a justiça, mas conseguem conhecer os fins que ele visa, ainda poderão manter uma base de certeza. Sabem com o que contam. E essa certeza, mesmo desligada de sentido de justiça, será preferível a anarquia, que não salvaguarda nem a justiça nem a certeza. Quando, porém, além de injusto, o poder se torna também incerto, pela ignorância ou pelo arbítrio dos governantes, esse poder torna-se apenas aparente. E só essa aparência poderá levar a crer que não se caiu na anarquia, «le pire des états», no dizer de Bossuet. Liga-se frequentemente a ideia de anarquia ao exercício ilimitado, incondicionado, da liberdade, ou da falsa liberdade, de todos. Mas trata-se de uma visão utópica. Nunca se conheceram situações reais de semelhante tipo. As situações que têm sido qualificadas como anárquicas caracterizaram-se sempre pelo exercício ilimitado, incondicionado, da liberdade, ou da falsa liberdade, de alguns, em detrimento de quase todos. Porque a generalidade dos homens não têm capacidade para viver tais situações, a não ser como vítimas. Ora quando se conserva uma aparência de poder, mas desligado da prossecução da justiça, e incapaz mesmo de assegurar condições de certeza na própria injustiça está-se em presença de uma situação anárquica, a despeito das aparências. Os governantes formais estarão a exercer uma liberdade, ou uma falsa liberdade, ilimitada e incondicionada, em detrimento de toda a sociedade e dos seus membros. Bem poderá qualificar-se essa situação como anárquica.

Insistir-se-á, pois, em que o poder, inseparável da legitimidade de exercício, constitui, por natureza, por essência, o instrumento da ordem social. E, consequentemente, será benéfico para a sociedade.
Pedro Soares Martínez (2003). Filosofia do Direito (3ª Edição), Capítulo IV.

domingo, 15 de novembro de 2020

Corporativismo e individualismo - Barreto Xavier, Hespanha

A tensão entre dois modelos muito profundos de apreensão dos fenómenos sociais — um tradicional, que concebe a sociedade como «corpo» internamente organizado e dotado de um destino metafísico (à semelhança do homem), e o moderno, pós-cartesiano, que explica os movimentos (as estabilidades) sociais na sua materialidade puramente externa — parece estruturar o percurso das ideias políticas nos dois séculos em questão [XVII e XVIII], precisamente porque estes dois modelos incidem sobre os amplos domínios da teoria social e política, como a origem da sociedade política, a sua «constituição», os limites do poder da coroa (e, dentro deste tema, as relações entre igreja e coroa), sobre as formas de governo. (…)

A concepção corporativa da sociedade

O pensamento social e político medieval é dominado pela ideia da existência de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objectivo último, que o pensamento cristão identificava com o próprio Criador. Assim, tanto o mundo físico como o mundo humano não eram explicáveis sem a referência a esse fim que os transcendia, a esse telos, a essa causa final (para utilizar uma impressiva formulação da filosofia aristotélica); o que os transformava apenas na face visível de uma realidade mais global, cujo (re)conhecimento era indispensável como fundamento de qualquer proposta política. (…)

Por outro lado, a unidade dos objectivos da criação não exigia que as funções de cada uma das partes do todo na consecução desses objectivos fosse idêntica às outras. Pelo contrário, o pensamento medieval sempre se manteve firmemente agarrado à ideia de que cada parte do todo cooperava de forma diferente na realização do destino cósmico. Por outras palavras, a unidade da criação era uma «unidade de ordenação» (unitas ordinis, totum universale ordinatum) — ou seja, uma unidade em virtude do arranjo das partes em vista de um fim comum — que não comprometia, antes pressupunha, a especificidade e irredutibilidade dos objectivos de cada uma das «ordens da criação e, dentro da espécie humana, de cada grupo ou corpo social».

Ligada a esta, a ideia de indispensabilidade de todos os órgãos da sociedade e, logo, da impossibilidade de um poder político «simples», «puro», não partilhado. Tão monstruoso como um corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade, em que todo o poder estivesse concentrado no soberano. O Poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua articulação natural (cohaerentia, ordo, dispositio naturae) — entre a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos devem existir instâncias intermédias. A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio propria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual o seu estatuto («foro», «direito», «privilégio»); numa palavra, realizando a justiça. E assim é que a realização da justiça — finalidade que os juristas e politólogos tardomedievais e primomodernos consideram como o primeiro ou até o único fim do poder político — se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política objectivamente estabelecida. (…)

O paradigma individualista

Embora se lhe possam encontrar antecedentes mais recuados (oposição entre estóicos e aristotélicos, entre agustinianismo e tomismo), a genealogia mais directa do paradigma individualista deve buscar-se na escolástica franciscana quatrocentista (Duns Scotto, 1266-1308, e Guilherme d’Occam, 1300-c. 1350). É com ela — e com uma célebre querela filosófica, a questão «dos universais» — que se põe em dúvida se não é legítimo, na compreensão da sociedade, partir do indivíduo e não dos grupos. Na verdade, passou a entender-se que aqueles atributos ou qualidades que se predicam dos indivíduos (ser pater familias, ser escolar, ser plebeu) e que descrevem as relações sociais em que estes estão integrados não são qualidades incorporadas na sua essência, não são «coisas» sem a consideração das quais a sua natureza não pudesse ser integralmente apreendida — como queriam os «realistas». Antes sendo meros «nomes», externos à essência, e que, portanto, podem ser deixados de lado na consideração desta. Se o fizermos, obtemos uma série de indivíduos «nus», incaracterísticos, intermutáveis, abstractos, «gerais», iguais. Verdadeiros átomos de uma sociedade que, esquecidas as tais «qualidades» tornadas descartáveis, podia também ser esquecida na teoria social e política.

Estava quase criado, por esta discussão aparentemente tão abstracta, um modelo intelectual que iria presidir a toda a reflexão social durante, pelo menos, os dois últimos séculos — o indivíduo, abstracto e igual —, ao mesmo tempo que desapareciam do proscénio as «pessoas concretas», ligadas essencialmente umas às outras por vínculos naturais e, com elas, desapareciam os grupos e a sociedade.

Para se completar a revolução intelectual da teoria política moderna só faltava desligar a sociedade de qualquer realidade metafísica, laicizando a teoria social e libertando o indivíduo de quaisquer limitações transcendentes. Essa revolução levou-a a cabo um novo entendimento das relações entre o Criador e as criaturas. A teologia tomista, sobretudo através da «teoria das causas segundas» — ao insistir na relativa autonomia e estabilidade da ordem da criação (das «causas segundas» em relação ao Criador, a «causa primeira») — garantira uma certa autonomia da Natureza em face da graça e, consequentemente, do saber temporal em face da fé. Mas foi, paradoxalmente, uma recaída no fideísmo, na concepção de urna completa dependência do homem e do Mundo em relação à vontade absoluta e livre de Deus. que levou a uma plena laicização da teoria social. Se Deus se move por «impulsos» (teoria do impetus, de raiz estóica), se os seus desígnios são insondáveis, não resta outro remédio senão tentar compreender (racionalmente ou por observação empírica) a ordem do Mundo nas suas manifestações puramente externas, como se Deus não existisse, separando rigorosamente as verdades da fé das aquisições intelectuais. É justamente esta laicização da teoria social — levada a cabo pelo pensamento jurídico e político desde H. Grócio a Hobbes — que a liberta de todas as anteriores hipotecas à teologia moral, do mesmo passo que liberta os indivíduos de todos os vínculos em relação a outra coisa que não sejam as suas evidências racionais e os seus impulsos naturais, reconhecidos por uma longa tradição antropológica de raiz estóica (…)

Esta laicização da teoria social e colocação no seu centro do indivíduo, geral e igual, livre e sujeito a impulsos naturais, tem consequências centrais para a compreensão do Poder. A partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa ordem objectiva das coisas; vai ser concebido como fundado na «vontade». Numa ou noutra de duas perspectivas. Ou na vontade soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente, pelo seu lugar-tenente — o príncipe (providencialismo, direito divino dos reis. Ou pela vontade dos homens que, levados ou pelos perigos e insegurança da sociedade natural ou pelo desejo de maximizar a felicidade e o bem-estar, instituem, por um acordo de vontades, por um «pacto», a sociedade civil (contratualismo). A vontade (e não um equilíbrio — ratio — preestabelecido) é, também, a origem do direito. (…)

Perante este voluntarismo cedem todas as limitações decorrentes de uma ordem superior à vontade (ordem natural ou sobrenatural). A constituição e o direito tornam-se disponíveis e a sua legitimidade não pode ser questionada em nome de algum critério normativo de mais alta hierarquia. Daqui se extrai (na perspectiva providencialista) que Deus pode enviar tiranos para governar os homens (pecadores, empedernidos), aos quais estes devem, apesar de tudo, obedecer. Extrai-se também que as leis fundamentais, como todos os pactos, são disponíveis, isto é, factíveis e alteráveis pelos homens num dado momento histórico. E, finalmente, que todo o direito positivo, bem como todas as convenções, enquanto produto directo ou indirecto de pactos, são justos. O que, como logo se vê, é o fundamento do moderno individualismo.
Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha (1993), "A representação da sociedade e do poder", em História de Portugal, Vol.4 - O Antigo Regime (1620-1807).

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Progresso - Gama e Castro

Quando se trata da civilização das nações, ou não há verdadeiro progresso, nem verdadeiro regresso, ou o que se chama progresso é muitas vezes regresso e vice-versa: porque os diferentes passos que uma nação pode dar na carreira da sua perfectibilidade política, em vez de formarem, como erradamente se pensa, uma linha recta cujas extremidades nunca se podem tocar, e onde cada ponto que se vai seguindo jamais pode tornar a cair no que se deixa, não formam senão uma linha curva, e até um verdadeiro círculo em que o mesmo espaço andado é sempre corrido de novo, enquanto há movimento. Por outras palavras: o andamento progressivo da civilização das nações há-de ser sempre o mesmo, porque é a consequência necessária da natureza do homem, que também não pode mudar. (…)
Assim, a marcha de qualquer povo que seja, na carreira da civilização, foi e há-de ser sempre a mesma, porque foi estabelecida de uma maneira irresistível pela mão omnipotente do Criador. São inúteis todos os esforços dos utopistas: quanto mais o reformador se esforçar por fazer caminhar a nação pela estrada da perfectibilidade, tanto mais, como Íxion da fábula, há-de correr atrás de si mesmo, e ir-se pouco a pouco aproximando daquele mesmíssimo ponto, de que parecia fugir. É m navegante que vai fazer uma viagem à roda do mundo: as léguas fogem detrás dele aos centos e aos milhares; mas quando ele supunha que se ia apartando infinitamente do ponto de donde tinha partido, ei-lo que, quando menos o pensa, torna a dar fundo no mesmíssimo porto donde tinha dado à vela. Eis aqui o que diz o Espírito Santo pela boca do Eclesiastes: «Que é o que há-de ser? O que foi. Que é o que se há-de fazer? O mesmo que já se fez.».
E este progresso de que falo é o único real e verdadeiro, porque é o progresso da natureza: e a sua marcha é essencialmente inevitável e fatalíssima. Talvez se lhe possa dar direcção, ou, pelo menos acelerar-lhe e retardar-lhe as crises; mas sempre há-de ser impossível embaraçar-lhe o andamento.
José da Gama e Castro (1841), O Novo Príncipe, Secção 2.ª, Capítulo IV.

sábado, 3 de outubro de 2020

Zeladores do livre pensamento (1.ª República) - Jaime Nogueira Pinto

Paralelamente ao poder republicano, mexiam-se os zeladores populares da causa do livre pensamento. Faziam-no segundo a técnica da «espontaneidade das massas»: bandos de carbonários e revolucionários civis, incluindo o habitual séquito de «patriotas» marginais popularmente conhecido por Formiga Branca ou por Formigas, assaltaram os jornais monárquicos e conservadores e destruíram, em Lisboa, as redacções do Diário Ilustrado, do Correio da Manhã e de O Liberal, «empastelando» os jornais («empastelar» era destruir a composição de chumbo da tipografia). No dia 1 de Fevereiro, em Coimbra, saquearam o CADC – Centro Académico da Democracia Cristã – e no Porto, aproveitando uma visita de Gomes Leal para uma conferência na Associação Católica, destruíram o jornal A Palavra e incendiaram o Círculo Católico. Gomes Leal era um poeta anticlerical convertido ao catolicismo e por isso alvo dilecto do rancor dos ex-correligionários. Contra estes desacatos protestavam indignados intelectuais republicanos, como Sampaio Bruno, pensador e director do Diário da Tarde.

A destruição de imagens de Cristo, da Virgem e dos santos tomou-se banal; as «almas do Purgatório» ou as «alminhas», pequenos retábulos de piedade popular disseminados pelas estradas e caminhos do país, também não escapavam à profanação e eram muitas vezes os próprios militares que se ocupavam da patriótica actividade.

Às igrejas eram arrombadas de noite e as imagens partidas à martelada ou atiradas ao chão. Havia que «educar o povo», mostrando-lhe que tais imagens, num tempo de Ciência e de Progresso, não passavam de «bonecos de pau». A sanha pedagógica de alguns livres pensadores apoiava-se também num infalível argumento estético, fruto de aturada peritagem: a total falta de «valor artístico» da maioria dos «bonecos de pau». O semanário católico A Voz da Verdade, em Junho de 1911, relata semelhantes actos de vandalismo nos concelhos do Porto, de Aveiro, de Lamego e de Ponte de Lima.

Eram também frequentes as acções contra os sacrários e os cálices, intencionalmente conspurcados. Em Lisboa, roubaram-nos da igreja paroquial de Santa Justa. Em Maio de 1911, foi a vez do Santuário de Nossa Senhora da Atalaia, em Aldeia Galega: a imagem da Virgem foi ali apeada e pendurada de cabeça para baixo. O Coração de Jesus, objecto de devoção dos fiéis, foi outro dos alvos preferenciais destes sacrilégios.

As autoridades não investigavam nem puniam estes actos, recebendo-os com tolerância ou limitando-se a repreendê-los com benevolência. A imprensa republicana procurava minimizá-los ou, quando mais violentos, sacrílegos e incontestáveis, atribuí-los a misteriosas provocações da reacção, que assim pretendia, maquiavelicamente, lançar o povo contra o regime.
Jaime Nogueira Pinto (2010). Nobre Povo: Os Anos da República, Capítulo 4.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Autoridade e conhecimento - Olavo de Carvalho

(...) Em seguida, ele mostra como duvidar de cada tipo de conhecimento. O princípio subjacente é que não deve confiar em nenhuma fonte que alguma vez já o enganou ou iludiu, ainda que só por uma vez. Descartes mostra, em primeiro lugar, que se pode duvidar de qualquer conhecimento que venha da autoridade. A razão disso é que especialistas divergem e não temos um modo seguro de chegar a uma decisão sobre qual deles está certo. Eis uma história que ilustra o problema. No início da Revolução Protestante, os católicos disseram que não havia maneira de discernir se Lutero e Calvino eram loucos ou não (uma suspeita que poderia ter a respeito de qualquer um que pensasse estar em contacto com Deus). Por outro lado, os católicos podiam saber a verdade, porque o Papa é infalível. Porém, os protestantes, rebeldes e ardilosos, não contestaram a infalibilidade papal; eles simplesmente fizeram a seguinte pergunta: Quem é o verdadeiro Papa? Não há maneira pela qual um ser humano falível possa dizer quem é Papa e quem não é – só o verdadeiro Papa sabe ao certo. E houve momentos em que mais de um cardeal afirmou ser o Papa. Isso dá conta do conhecimento baseado na autoridade. Ora, esta mesma história mostra também como duvidar de uma espécie muito influente de autoridade da cristandade ocidental, a da revelação. Talvez Deus tenha revelado algumas verdades para os patriarcas bíblicos, como Moisés, por exemplo. Mas como sabiam eles que aquele era Deus? E se era mesmo Deus, será que eles o entenderam? E se eles o entenderam, será que conseguiram escrever a mensagem direito? E se conseguiram escrevê-la direito, como saber se nós a entendemos? (...)

Tudo isto aqui está muito certo, com excepção de um ponto: se nada aceitarmos da autoridade, não temos acesso a esta discussão. Por exemplo: se alguém contesta que o Papa é Papa, ele o faz, certamente, com alguma autoridade. Ou seja: a possibilidade de colocarmos totalmente entre parêntesis qualquer autoridade é nula: só podemos contestar uma autoridade em nome de outra. Se há um entrechoque de autoridades, temos de reconhecer que uma delas é autoridade, ou nenhuma delas é e deve haver uma terceira. Se neutralizarmos completamente a ideia de autoridade, o pensamento torna-se inviável a partir desse momento, porque autoridade vem de autor; ou seja, é o poder do testemunho. Se eu colocar em dúvida todos os testemunhos — e notem bem que a autoridade em última análise se resume à ideia de testemunho —, então eu não posso ter sequer acesso aos dados do problema.  

Porque eu leio: os católicos disseram tal coisa; os protestantes disseram o contrário. E eu confio nesta informação; eu confio neste testemunho. E se alguém me disser: os católicos não disseram nada disso e nem os protestantes responderam, isto é tudo uma ilusão? Ou seja, se eu não tenho nenhuma confiança no testemunho, eu não tenho acesso a nenhum facto que eu não tenha testemunhado pessoalmente.

Isto quer dizer que podemos contestar algumas autoridades, mas não todas, senão o próprio relato do conflito entre as autoridades seria inacessível. Se alguém me diz que há um conflito entre católicos e protestantes, ou eu confio no que esta pessoa me está a dizer, ou eu vou ter de perguntar a cada católico e a cada protestante pessoalmente.  

Isto é: a crítica que Descartes faz à autoridade não é uma crítica radical. É uma crítica, por assim dizer, fingida. Ele contesta algumas autoridades, mas não todas. E quando ele contesta essas algumas, ele diz que coloca entre parêntesis todo o conhecimento advindo da realidade. Eu digo: como é que ele não percebeu isto? O homem daquela inteligência! O homem que inventou a geometria analítica! Então alguma coisa está errada. Eu não sei se ele mentiu ou se ele realmente não percebeu. Nos dois casos é muito grave.  

Mas, a ideia de que se pode contestar o conhecimento baseado na autoridade é uma ideia que hoje qualquer criança de escola tem, e isto impregnou-se na cabeça de quase toda a humanidade ocidental. E não há ninguém que diga: Sem a confiabilidade do testemunho foi tudo pelo ar. Alguma autoridade tem de existir e alguém tem de confiar em alguém; não é possível verificar tudo pessoalmente. Se eu duvido da autoridade dos Papas, é porque eu confio na autoridade do historiador que conta as burradas que os Papas fizeram. Se eu desconfio da autoridade de Lutero, é porque eu confio em quem me contou que Lutero é maluco. Se eu duvidar de todos, pronto, eu estou paralisado.  

Toda a crítica a uma autoridade é feita em nome de outra autoridade; toda a crítica a um testemunho é feita em nome de outro testemunho. Aristóteles já dizia: “Todo conhecimento se baseia em outro conhecimento”. Não há nenhum conhecimento que se baseie no nada. Passados mil e novecentos anos depois de Aristóteles, vem um indivíduo que diz que vai partir do zero. E as pessoas acreditam que ele partiu do zero. Este é o maior gesto de credulidade da história universal!  

“Ah, Descartes fez tábua rasa”. O quê? Claro que ele não fez: ele disse que fez. Ele está a representar a coisa, como se estivesse num teatro. Só que este teatro, como todo o teatro, tem uma função hipnótica: esquecemos que é um teatro e vivenciamos aquilo como se fosse realidade. Claro, sabendo que, depois de terminar o teatro, voltamos para casa e volta tudo ao normal. Só que nesse caso, não voltamos para casa: continuamos, pelos séculos dos séculos, a esquecer de fazer a pergunta que Descartes não fez. Se eu não acreditar em autoridade nenhuma, eu não posso colocar em causa nenhuma autoridade.  

Sim, eu posso duvidar de que Moisés fez isto ou aquilo, mas para eu chegar a duvidar disso, eu preciso ter acesso a um livro que diz que Moisés fez isto ou aquilo. E se alguém me traz informações que contradizem aquilo que Moisés diz que fez, eu vou ter de acreditar neste testemunho para poder colocar Moisés em dúvida. Isto significa que a autoridade e a confiança são elementos básicos de qualquer conhecimento humano. E Aristóteles já sabia disto. Entendem porque Schelling diz que, a partir desse momento, a filosofia voltou para um nível pueril? É por causa disto.

E, passados quatro séculos, um homem inteligente como esse biógrafo de René Descartes passa em cima dessas questões sem nem perceber que elas estão lá. Porque faz ele isso? Porque ele confia na autoridade do consenso. Todos dizem a mesma coisa a respeito de René Descartes, todos acreditam que Descartes colocou tudo em dúvida. Então quem sou eu para colocar em dúvida essa autoridade do consenso? Então o indivíduo afirma resolutamente a sua confiança cega na autoridade no mesmo instante em que diz que está a contestar toda e qualquer autoridade. Entendem porque às vezes a filosofia raia a estupidez pura e simples? E que às vezes ser um grande filósofo é apenas ter desenvolvido uma espécie requintada, sofisticada, de estupidez?  
Excerto da aula 120 do COF, 3 de Setembro de 2011. Adaptação para PT-PT.