quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Axioma do liberalismo - Jean-Claude Michéa

O axioma base do liberalismo político é bem conhecido. Se é a pretensão de certos indivíduos (ou de associações de indivíduos, tal como a Igreja) deterem a verdade sobre o Bem a causa fundamental que leva os homens a confrontarem-se violentamente, então os membros de uma sociedade só poderão viver em paz uns com os outros se o Poder encarregue de organizar a sua coexistência for filosoficamente neutro; isto é, se ele se abstém, por princípio, de impor aos indivíduos esta ou aquela concepção de vida bem vivida. Numa sociedade liberal cada um é, portanto, livre de adoptar o estilo de vida que julga ser o mais apropriado à sua concepção de dever (se é que tem uma) ou de felicidade; sobre a única reserva, naturalmente, que estas escolhas sejam compatíveis com a liberdade correspondente dos outros. Esta última exigência supõe a existência – acima desses indivíduos empenhados separadamente na sua procura por uma vida bem vivida e pela felicidade – de uma instância responsável por harmonizar as liberdades concorrentes a cada momento, e com justificação, por este motivo, para apenas limitar-lhes o campo de acção definindo um conjunto de regras comuns. Esta instância é o Direito (cuja aplicação efectiva é, nesta óptica, a única função essencial do Estado). (…)
A “teoria da justiça” na qual se fundamenta a nova autoridade do Direito tem, na verdade, pouco que ver com aquela que a filosofia tradicional havia considerado sobre o mesmo nome. De facto, ela não se preocupa mais em definir Ideias ou a capturar Essências; isto é, em falar em nome de uma qualquer “Verdade”, seja qual for o estatuto metafísico desta última. Mais que uma “teoria da justiça”, conviria falar em vez de uma teoria de ajustamento. Com efeito, trata-se sobretudo de desenvolver as combinações institucionais mais eficazes, e assim de optimizar um sistema de pesos e contrapesos (checks and balances, como dizem os filósofos anglo-saxónicos) que permitirá manter o equilíbrio de liberdades rivais impondo o mínimo de exigências (…). Uma teoria liberal da justiça não deve, portanto, comprometer-se, por princípio, com nenhuma reflexão filosófica particular sobre qual poderá ser a melhor forma de viver. Ela limita-se, pelo contrário, a definir as condições técnicas de um simples modus vivendi. Aquilo que é necessário impor a um conjunto de partículas elementares em movimento perpétuo se se pretende reduzir ao máximo os riscos de choques e colisões (o que equivale, em suma, a atribuir ao Direito liberal uma função comparável àquela do Código da Estrada). (…)
Como vimos, a autoridade do Direito liberal só é, de facto, legítima porque ela se limita a arbitrar o movimento browniano de liberdades concorrentes, sem nunca apelar a outros critérios para lá das exigências da própria liberdade; as quais se resumem, fundamentalmente, apenas à necessidade de não causar dano a outrem. (…) Com que direito, de facto, pode uma sociedade liberal, por exemplo, impedir um indivíduo de se magoar a si próprio (…)? Ou, colocando-nos no plano da relação de indivíduos entre si, com que fundamento decidir que o facto de se criticar uma religião (ou de a ridicularizar) não lesa o exercício da liberdade, correctamente entendida, dos crentes? Em que medida, por outro lado, os ensinamentos desta ou daquela religião sobre o estatuto da mulher ou a natureza da homossexualidade não implicam um ataque directo aos “direitos das minorias”? Perante estas questões, que se multiplicam ao infinito, o Direito liberal está obrigatoriamente em grandes dificuldades. Assumindo que, para justificar a sua arbitragem, se deva coibir de se apoiar em concepções metafísicas particulares (por exemplo numa determinada concepção de salvação da alma, de decência comum ou de dignidade humana), é, de facto, inevitável, devido à evolução perpétua dos costumes (processo que os Modernos acordaram com unanimidade de chamar “natural”), que se reencontre confrontado com um número crescente de “questões fracturantes”, manifestamente impossíveis de resolver de forma coerente no quadro estritamente técnico em que se colocou. A consequência lógica é, portanto, que enverede progressivamente numa via de regulamentação em massa de todos os comportamentos possíveis e imagináveis. (…)
É, no entanto, de prever que haverá sempre outros indivíduos – ou associações de indivíduos – que consideram que cada um destes novos “avanços do Direito” atentam contra a sua liberdade, na medida em que causam dano à sua sensibilidade ou à sua “auto-estima” (que constituem, ao momento e de acordo com a opinião comum, uma parte integrante dessa liberdade). Assim, no longo prazo, é inevitável que este processo de extensão infinita dos direitos individuais (ou da liberalização dos costumes) acabe por desencadear, sobre o efeito da velha dialéctica acção-reacção, o surgimento de uma nova guerra de todos contra todos. (…) E porque a neutralidade proclamada do Direito liberal o priva, de antemão, de todo o suporte filosófico sério para decidir entre todas as pretensões contraditórias, não tem outra alternativa à sua disposição, no final de contas, que registar passivamente a variação incessante das diferentes relações de força que actuam sobre a opinião e a sociedade. (…) Certamente, o clima estranho que se instala em consequência disto, a favor destas cruzadas jurídicas cada vez mais numerosas (prazeres perversos da delação, da vigilância generalizada de uns pelos outros, multiplicação, de repente inevitável, de censuras, de controlos e de proibições), parece estar nos antípodas do mundo agradável e tolerante que sonhavam os fundadores do liberalismo[.]