domingo, 15 de novembro de 2020

Corporativismo e individualismo - Barreto Xavier, Hespanha

A tensão entre dois modelos muito profundos de apreensão dos fenómenos sociais — um tradicional, que concebe a sociedade como «corpo» internamente organizado e dotado de um destino metafísico (à semelhança do homem), e o moderno, pós-cartesiano, que explica os movimentos (as estabilidades) sociais na sua materialidade puramente externa — parece estruturar o percurso das ideias políticas nos dois séculos em questão [XVII e XVIII], precisamente porque estes dois modelos incidem sobre os amplos domínios da teoria social e política, como a origem da sociedade política, a sua «constituição», os limites do poder da coroa (e, dentro deste tema, as relações entre igreja e coroa), sobre as formas de governo. (…)

A concepção corporativa da sociedade

O pensamento social e político medieval é dominado pela ideia da existência de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objectivo último, que o pensamento cristão identificava com o próprio Criador. Assim, tanto o mundo físico como o mundo humano não eram explicáveis sem a referência a esse fim que os transcendia, a esse telos, a essa causa final (para utilizar uma impressiva formulação da filosofia aristotélica); o que os transformava apenas na face visível de uma realidade mais global, cujo (re)conhecimento era indispensável como fundamento de qualquer proposta política. (…)

Por outro lado, a unidade dos objectivos da criação não exigia que as funções de cada uma das partes do todo na consecução desses objectivos fosse idêntica às outras. Pelo contrário, o pensamento medieval sempre se manteve firmemente agarrado à ideia de que cada parte do todo cooperava de forma diferente na realização do destino cósmico. Por outras palavras, a unidade da criação era uma «unidade de ordenação» (unitas ordinis, totum universale ordinatum) — ou seja, uma unidade em virtude do arranjo das partes em vista de um fim comum — que não comprometia, antes pressupunha, a especificidade e irredutibilidade dos objectivos de cada uma das «ordens da criação e, dentro da espécie humana, de cada grupo ou corpo social».

Ligada a esta, a ideia de indispensabilidade de todos os órgãos da sociedade e, logo, da impossibilidade de um poder político «simples», «puro», não partilhado. Tão monstruoso como um corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade, em que todo o poder estivesse concentrado no soberano. O Poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua articulação natural (cohaerentia, ordo, dispositio naturae) — entre a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos devem existir instâncias intermédias. A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio propria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual o seu estatuto («foro», «direito», «privilégio»); numa palavra, realizando a justiça. E assim é que a realização da justiça — finalidade que os juristas e politólogos tardomedievais e primomodernos consideram como o primeiro ou até o único fim do poder político — se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política objectivamente estabelecida. (…)

O paradigma individualista

Embora se lhe possam encontrar antecedentes mais recuados (oposição entre estóicos e aristotélicos, entre agustinianismo e tomismo), a genealogia mais directa do paradigma individualista deve buscar-se na escolástica franciscana quatrocentista (Duns Scotto, 1266-1308, e Guilherme d’Occam, 1300-c. 1350). É com ela — e com uma célebre querela filosófica, a questão «dos universais» — que se põe em dúvida se não é legítimo, na compreensão da sociedade, partir do indivíduo e não dos grupos. Na verdade, passou a entender-se que aqueles atributos ou qualidades que se predicam dos indivíduos (ser pater familias, ser escolar, ser plebeu) e que descrevem as relações sociais em que estes estão integrados não são qualidades incorporadas na sua essência, não são «coisas» sem a consideração das quais a sua natureza não pudesse ser integralmente apreendida — como queriam os «realistas». Antes sendo meros «nomes», externos à essência, e que, portanto, podem ser deixados de lado na consideração desta. Se o fizermos, obtemos uma série de indivíduos «nus», incaracterísticos, intermutáveis, abstractos, «gerais», iguais. Verdadeiros átomos de uma sociedade que, esquecidas as tais «qualidades» tornadas descartáveis, podia também ser esquecida na teoria social e política.

Estava quase criado, por esta discussão aparentemente tão abstracta, um modelo intelectual que iria presidir a toda a reflexão social durante, pelo menos, os dois últimos séculos — o indivíduo, abstracto e igual —, ao mesmo tempo que desapareciam do proscénio as «pessoas concretas», ligadas essencialmente umas às outras por vínculos naturais e, com elas, desapareciam os grupos e a sociedade.

Para se completar a revolução intelectual da teoria política moderna só faltava desligar a sociedade de qualquer realidade metafísica, laicizando a teoria social e libertando o indivíduo de quaisquer limitações transcendentes. Essa revolução levou-a a cabo um novo entendimento das relações entre o Criador e as criaturas. A teologia tomista, sobretudo através da «teoria das causas segundas» — ao insistir na relativa autonomia e estabilidade da ordem da criação (das «causas segundas» em relação ao Criador, a «causa primeira») — garantira uma certa autonomia da Natureza em face da graça e, consequentemente, do saber temporal em face da fé. Mas foi, paradoxalmente, uma recaída no fideísmo, na concepção de urna completa dependência do homem e do Mundo em relação à vontade absoluta e livre de Deus. que levou a uma plena laicização da teoria social. Se Deus se move por «impulsos» (teoria do impetus, de raiz estóica), se os seus desígnios são insondáveis, não resta outro remédio senão tentar compreender (racionalmente ou por observação empírica) a ordem do Mundo nas suas manifestações puramente externas, como se Deus não existisse, separando rigorosamente as verdades da fé das aquisições intelectuais. É justamente esta laicização da teoria social — levada a cabo pelo pensamento jurídico e político desde H. Grócio a Hobbes — que a liberta de todas as anteriores hipotecas à teologia moral, do mesmo passo que liberta os indivíduos de todos os vínculos em relação a outra coisa que não sejam as suas evidências racionais e os seus impulsos naturais, reconhecidos por uma longa tradição antropológica de raiz estóica (…)

Esta laicização da teoria social e colocação no seu centro do indivíduo, geral e igual, livre e sujeito a impulsos naturais, tem consequências centrais para a compreensão do Poder. A partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa ordem objectiva das coisas; vai ser concebido como fundado na «vontade». Numa ou noutra de duas perspectivas. Ou na vontade soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente, pelo seu lugar-tenente — o príncipe (providencialismo, direito divino dos reis. Ou pela vontade dos homens que, levados ou pelos perigos e insegurança da sociedade natural ou pelo desejo de maximizar a felicidade e o bem-estar, instituem, por um acordo de vontades, por um «pacto», a sociedade civil (contratualismo). A vontade (e não um equilíbrio — ratio — preestabelecido) é, também, a origem do direito. (…)

Perante este voluntarismo cedem todas as limitações decorrentes de uma ordem superior à vontade (ordem natural ou sobrenatural). A constituição e o direito tornam-se disponíveis e a sua legitimidade não pode ser questionada em nome de algum critério normativo de mais alta hierarquia. Daqui se extrai (na perspectiva providencialista) que Deus pode enviar tiranos para governar os homens (pecadores, empedernidos), aos quais estes devem, apesar de tudo, obedecer. Extrai-se também que as leis fundamentais, como todos os pactos, são disponíveis, isto é, factíveis e alteráveis pelos homens num dado momento histórico. E, finalmente, que todo o direito positivo, bem como todas as convenções, enquanto produto directo ou indirecto de pactos, são justos. O que, como logo se vê, é o fundamento do moderno individualismo.
Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha (1993), "A representação da sociedade e do poder", em História de Portugal, Vol.4 - O Antigo Regime (1620-1807).