segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Amigo e inimigo - Schmitt

A diferenciação especificamente política, à qual podem ser relacionadas as acções e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo, fornecendo uma definição conceptual no sentido de um critério, não como definição exaustiva ou expressão de conteúdo. Na medida em que não é derivável de outros critérios, ela corresponde para o político aos critérios relativamene autónomos de outras antíteses: bom e mau no moral; belo e feio no estético, etc. Em todo o caso, ela é autónoma, não no sentido de um novo âmbito próprio, e sim no modo de que nem se fundamenta numa daquelas outras antíteses ou em várias delas, nem pode ser relacionada a elas. Se a antítese entre bom e mau não é idêntica sem dificuldades e de forma simples àquela entre belo e feio ou entre útil e prejudicial e não lhe pode ser directamente relacionada, então a antítese entre amigo e inimigo pode ser ainda menos confundida ou mesclada com uma daquelas outras antíteses. A diferenciação entre amigo e inimigo tem o propósito de caracterizar o extremo grau de intensidade de uma união ou separação, de uma associação ou desassociação, podendo existir na teoria e na prática, sem que, simultaneamente, tenham que ser empregadas todas aquelas diferenciações morais, estéticas, económicas ou outras. O inimigo polítco não precisa de ser moralmente mau, não precisa de ser esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como concorrente económico e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é precisamente o outro, o desconhecido e, para a sua essência, basta que ele seja, num sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, num caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser decididos nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro "não envolvido" e, destarte, "imparcial". 

(...)

[I]nimigo não é o concorrente ou o adversário em geral. Tampouco é inimigo o adversário privado a quem se odeia por sentimentos de antipatia. Inimigo é apenas um conjunto de pessoas em combate ao menos eventualmente, i.e. segundo a possibilidade real e que se defronta com um conjunto idêntico. Inimigo é somente o inimigo público, pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas, especialmente a todo um povo, se torna, por isso, público. Inimigo é hostis, não inimicus em sentido amplo; polemios, não echtros. A língua alemã, assim como outras línguas, não diferencia o "inimigo" privado e o político, de modo que se fazem possíveis muitos equívocos e falsificações. O trecho muito citado "amai os vossos inimigos" (Mt 5:44; Lc 6:27) significa "diligite inimicos vestros", "agapate tous echtrous hymon", e não: diligite hotes vestros; não se fala do inimigo político. Mesmo na guerra milenar entre o Cristianismo e o Islamismo, nunca ocorreu a um cristão, por amor aos sarracenos ou aos turcos, ter que entregar a Europa ao Islamismo, em vez de defendê-la. Não é preciso odiar pessoalmente o inimigo no sentido político e só tem sentido amar o seu "inimigo", i.e., o seu adversário, na esfera privada. Aquela passagem bíblica não diz respeito à contraposição política, assim como, por exemplo, não tem a pretensão de suprimir as oposições entre bom e mau ou belo e feio. Sobretudo, ela não significa que se deve amar os inimigos do seu povo e apoiá-los contra o seu próprio povo.