quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Liberdade cristã

O conceito de liberdade tem vários significados. Pode referir-se à capacidade de fazer o que se deseja, à ausência de interferência externa na acção ou à independência face ao arbítrio e boa vontade de outrem. Os significados são tantos que é comum o termo surgir equivocado no debate político.

Um conceito de liberdade hoje relativamente esquecido é a liberdade na acepção cristã. Esta refere-se, genericamente, à capacidade de não pecar ou, fugindo da linguagem teológica, à capacidade de fazer o bem. Quem não é livre, portanto, é escravo do pecado ou de algum vício. 

Esta noção de liberdade tem origem bíblica:
"Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado."
Jo 8:34. Tradução Difusora Bíblica, de 2002. 

"É isto o que devemos saber: o homem velho que havia em nós foi crucificado com Ele, para que fosse destruído o corpo pertencente ao pecado; e assim não somos mais escravos do pecado mas vivos para Deus, em Cristo Jesus. Portanto, que o pecado não reine mais no vosso corpo mortal, de tal modo que obedeçais às suas paixões. Não entregueis os vossos membros, como armas da injustiça, ao serviço do pecado. Pelo contrário, entregai-vos a Deus, como vivos de entre os mortos, e entregai os vossos membros, como armas da justiça, ao serviço de Deus. Pois o pecado não terá mais domínio sobre vós, uma vez que não estais sob a Lei, mas sob a graça. 
Então? Vamos pecar, porque não estamos sob a Lei, mas sob a graça? De modo nenhum! Não sabeis que, se vos entregais a alguém, obedecendo-lhe como escravos, sois escravos daquele a quem obedeceis, quer seja do pecado que leva à morte, quer da obediência que leva à justiça? 
Demos graças a Deus: éreis escravos do pecado, mas obedecestes de coração ao ensino que vos foi transmitido como norma de vida. E libertos do pecado, tornastes-vos escravos da justiça. 
Estou a falar em termos humanos, devido à fraqueza da vossa carne. Do mesmo modo que entregastes os vossos membros, como escravos, à impureza e à desordem, para viverdes na desordem, entregai agora também os vossos membros como escravos à justiça, para viverdes em santidade. 
Quando éreis escravos do pecado, éreis livres no que toca à justiça. Afinal, que frutos produzíeis então? Coisas de que agora vos envergonhais, porque o resultado disso era a morte. 
Mas agora, que estais libertos do pecado e vos tornastes servos de Deus, produzis frutos que levam à santificação, e o resultado é a vida eterna. É que o salário do pecado é a morte; ao passo que o dom gratuito que vem de Deus é a vida eterna, em Cristo Jesus, Senhor nosso." 
Rm 6. Tradução Difusora Bíblica, de 2002. 

"Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão."
Gl 5:1. Tradução Difusora Bíblica, de 2002.

"Prometem-lhes a liberdade, quando eles próprios são escravos da corrupção, pois é-se escravo daquele por quem nos deixamos vencer." 
2Pe 2:19. Tradução Difusora Bíblica, de 2002.

Sto. Agostinho também se refere explicitamente a esta noção de liberdade:

"o bom, mesmo que reduzido à escravidão, é livre: ao passo que o mau, mesmo que seja rei, é escravo - não de um homem mas, o que é mais grave, de tantos senhores quanto vícios. A estes vícios se refere a Sagrada Escritura quando diz: «Quando alguém se deixa vencer por alguma coisa, torna-se dela escravo» (2Pe 2:19)"
Santo Agostinho, Cidade de Deus, IV. 3. Tradução Calouste Gulbenkian, de 1996. O último verso é também citado atrás, mas com uma tradução diferente.


Igualmente para Sto. Anselmo:
"Uma vez que o livre-arbítrio divino e aquele dos bons anjos não podem pecar, ser capaz de pecar não pertence à definição de livre-arbítrio. Além disso, a capacidade de pecar não é nem liberdade nem parte da liberdade. (...) Uma vez que a liberdade é uma capacidade, a liberdade da vontade é a capacidade de preservar a rectidão da vontade tendo por fim a própria rectidão."
S. Anselmo. De Libertate Arbitrii (1,3). Retirado de Santo Anselmo, Davies, Evans. (1998). Anselm of Canterbury: The Major Works. Tradução própria.

E para S. Tomás:
"Por isso, que o livre-arbítrio possa escolher coisas diversas, guardada a sua ordenação para o fim, isso pertence à perfeição da sua liberdade. Porém, que escolha algo afastando-se da ordenação para o fim, o que é pecar, isso pertence ao defeito da liberdade. É maior, portanto, a liberdade de arbítrio nos anjos, que não podem pecar, do que em nós, que podemos."


E o mesmo se diz nos tempos modernos:
"A liberdade não consiste em fazer o que se quer, mas em ter o direito de se fazer o que se deve."