sábado, 19 de dezembro de 2020

O Homem é um animal político - Aristóteles

Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer. O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem-estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias. Nenhum inimigo infligiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus actos. Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações. A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais, uma vez transformados em hábito, já não podem passar; são estes os mais deploráveis de todos, pois se deixaram chegar a um ponto tal em que se lhes tomou indispensável uma coisa que começou por ser apenas supérflua. Em vez de os desfrutar, tornam-se escravos do prazer; e, para cúmulo da desgraça, acabam por amar aquilo mesmo que os torna desgraçados. Atinge-se assim o cume da infelicidade: a degradação torna-se, de prazer, em condição natural; quando os vícios se transformam em hábito deixa de ser possível a aplicação de qualquer remédio.
A cidade, enfim, é uma comunidade completa, formada a partir de várias aldeias e que, por assim dizer, atinge o máximo de auto-suficiência. Formada a princípio para preservar a vida, a cidade subsiste para assegurar a vida boa. É por isso que toda a cidade existe por natureza, se as comunidades primeiras assim o foram. A cidade é o fim destas, e a natureza de uma coisa é o seu fim, já que, sempre que o processo de génese de uma coisa se encontre completo, é a isso que chamamos a sua natureza, seja de um homem, de um cavalo, ou de uma casa. Além disso, a causa final, o fim de uma coisa, é o seu melhor bem, e a auto-suficiência é, simultaneamente, um fim e o melhor dos bens.
Estas considerações evidenciam que uma cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver cidade, será um decaído ou sobre-humano, tal como o homem condenado por Homero como “sem família, nem lei, nem lar”; porque aquele é assim por natureza, está, além do mais, sedento de ir para a guerra, e é comparável à peça isolada de um jogo.
A razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza, conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra. Assim, enquanto a voz indica prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também atributo de outros animais (cuja natureza também atinge sensações da dor e de prazer e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado, serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto. É que, perante os outros seres vivos, o homem tem as suas peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o justo e o injusto; é a comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade.
Além disso, a cidade é por natureza anterior à família e a cada um de nós, individualmente considerado; é que o todo é, necessariamente, anterior à parte. Se o corpo como um todo é destruído, não haverá nem pé nem mão, excepto por homonímia, no sentido em que falamos de uma mão feita de pedra: uma mão deste género será uma mão morta; tudo é definido segundo a sua capacidade ou função. Ora, todas as coisas definem-se pela sua função e pelas suas faculdades; quando já não se encontram operantes não devemos afirmar que são a mesma coisa, mas apenas que têm o mesmo nome. É evidente que a cidade é, por natureza, anterior ao indivíduo, porque se um indivíduo separado não é auto-suficiente, permanecerá em relação à cidade como as partes em relação ao todo. Quem for incapaz de se associar ou que não sente essa necessidade por causa da sua auto-suficiência, não faz parte de qualquer cidade, e será um bicho ou um deus.
É decerto natural a tendência que existe em todos os homens para formar uma comunidade deste género, mas quem primeiro a estabeleceu foi causa de grandes benefícios. Tal como o homem é o melhor dos animais quando atinge o seu pleno desenvolvimento, do mesmo modo, quando afastado da lei e da justiça, será o pior. A injustiça armada é, efectivamente, a mais perigosa; o homem nasceu com armas que devem servir a sabedoria prática e a virtude mas que também podem ser usadas para fins absolutamente opostos. É por isso que o homem sem virtude é a criatura mais ímpia e selvagem, e a mais grosseira de todas no que diz respeito aos prazeres do sexo e da alimentação. A justiça é própria da cidade, já que a justiça é a ordem da comunidade de cidadãos e consiste no discernimento do que é justo.
Aristóteles (Séc. IV a.C.). Política. Tradução de António Campelo Amaral e Carlos Gomes, para a Editora Vega em 1998.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Necessidades artificiais - Séneca

Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer. O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem-estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias. Nenhum inimigo infligiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus actos. Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações. A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais, uma vez transformados em hábito, já não podem passar; são estes os mais deploráveis de todos, pois se deixaram chegar a um ponto tal em que se lhes tomou indispensável uma coisa que começou por ser apenas supérflua. Em vez de os desfrutar, tornam-se escravos do prazer; e, para cúmulo da desgraça, acabam por amar aquilo mesmo que os torna desgraçados. Atinge-se assim o cume da infelicidade: a degradação torna-se, de prazer, em condição natural; quando os vícios se transformam em hábito deixa de ser possível a aplicação de qualquer remédio.
Séneca (c. 65). Cartas a Lucílio, 39. Tradução de J.A. Segurado e Campos, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2004.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Axioma do liberalismo - Jean-Claude Michéa

O axioma base do liberalismo político é bem conhecido. Se é a pretensão de certos indivíduos (ou de associações de indivíduos, tal como a Igreja) deterem a verdade sobre o Bem a causa fundamental que leva os homens a confrontarem-se violentamente, então os membros de uma sociedade só poderão viver em paz uns com os outros se o Poder encarregue de organizar a sua coexistência for filosoficamente neutro; isto é, se ele se abstém, por princípio, de impor aos indivíduos esta ou aquela concepção de vida bem vivida. Numa sociedade liberal cada um é, portanto, livre de adoptar o estilo de vida que julga ser o mais apropriado à sua concepção de dever (se é que tem uma) ou de felicidade; sobre a única reserva, naturalmente, que estas escolhas sejam compatíveis com a liberdade correspondente dos outros. Esta última exigência supõe a existência – acima desses indivíduos empenhados separadamente na sua procura por uma vida bem vivida e pela felicidade – de uma instância responsável por harmonizar as liberdades concorrentes a cada momento, e com justificação, por este motivo, para apenas limitar-lhes o campo de acção definindo um conjunto de regras comuns. Esta instância é o Direito (cuja aplicação efectiva é, nesta óptica, a única função essencial do Estado). (…)
A “teoria da justiça” na qual se fundamenta a nova autoridade do Direito tem, na verdade, pouco que ver com aquela que a filosofia tradicional havia considerado sobre o mesmo nome. De facto, ela não se preocupa mais em definir Ideias ou a capturar Essências; isto é, em falar em nome de uma qualquer “Verdade”, seja qual for o estatuto metafísico desta última. Mais que uma “teoria da justiça”, conviria falar em vez de uma teoria de ajustamento. Com efeito, trata-se sobretudo de desenvolver as combinações institucionais mais eficazes, e assim de optimizar um sistema de pesos e contrapesos (checks and balances, como dizem os filósofos anglo-saxónicos) que permitirá manter o equilíbrio de liberdades rivais impondo o mínimo de exigências (…). Uma teoria liberal da justiça não deve, portanto, comprometer-se, por princípio, com nenhuma reflexão filosófica particular sobre qual poderá ser a melhor forma de viver. Ela limita-se, pelo contrário, a definir as condições técnicas de um simples modus vivendi. Aquilo que é necessário impor a um conjunto de partículas elementares em movimento perpétuo se se pretende reduzir ao máximo os riscos de choques e colisões (o que equivale, em suma, a atribuir ao Direito liberal uma função comparável àquela do Código da Estrada). (…)
Como vimos, a autoridade do Direito liberal só é, de facto, legítima porque ela se limita a arbitrar o movimento browniano de liberdades concorrentes, sem nunca apelar a outros critérios para lá das exigências da própria liberdade; as quais se resumem, fundamentalmente, apenas à necessidade de não causar dano a outrem. (…) Com que direito, de facto, pode uma sociedade liberal, por exemplo, impedir um indivíduo de se magoar a si próprio (…)? Ou, colocando-nos no plano da relação de indivíduos entre si, com que fundamento decidir que o facto de se criticar uma religião (ou de a ridicularizar) não lesa o exercício da liberdade, correctamente entendida, dos crentes? Em que medida, por outro lado, os ensinamentos desta ou daquela religião sobre o estatuto da mulher ou a natureza da homossexualidade não implicam um ataque directo aos “direitos das minorias”? Perante estas questões, que se multiplicam ao infinito, o Direito liberal está obrigatoriamente em grandes dificuldades. Assumindo que, para justificar a sua arbitragem, se deva coibir de se apoiar em concepções metafísicas particulares (por exemplo numa determinada concepção de salvação da alma, de decência comum ou de dignidade humana), é, de facto, inevitável, devido à evolução perpétua dos costumes (processo que os Modernos acordaram com unanimidade de chamar “natural”), que se reencontre confrontado com um número crescente de “questões fracturantes”, manifestamente impossíveis de resolver de forma coerente no quadro estritamente técnico em que se colocou. A consequência lógica é, portanto, que enverede progressivamente numa via de regulamentação em massa de todos os comportamentos possíveis e imagináveis. (…)
É, no entanto, de prever que haverá sempre outros indivíduos – ou associações de indivíduos – que consideram que cada um destes novos “avanços do Direito” atentam contra a sua liberdade, na medida em que causam dano à sua sensibilidade ou à sua “auto-estima” (que constituem, ao momento e de acordo com a opinião comum, uma parte integrante dessa liberdade). Assim, no longo prazo, é inevitável que este processo de extensão infinita dos direitos individuais (ou da liberalização dos costumes) acabe por desencadear, sobre o efeito da velha dialéctica acção-reacção, o surgimento de uma nova guerra de todos contra todos. (…) E porque a neutralidade proclamada do Direito liberal o priva, de antemão, de todo o suporte filosófico sério para decidir entre todas as pretensões contraditórias, não tem outra alternativa à sua disposição, no final de contas, que registar passivamente a variação incessante das diferentes relações de força que actuam sobre a opinião e a sociedade. (…) Certamente, o clima estranho que se instala em consequência disto, a favor destas cruzadas jurídicas cada vez mais numerosas (prazeres perversos da delação, da vigilância generalizada de uns pelos outros, multiplicação, de repente inevitável, de censuras, de controlos e de proibições), parece estar nos antípodas do mundo agradável e tolerante que sonhavam os fundadores do liberalismo[.]