terça-feira, 6 de outubro de 2020

Progresso - Gama e Castro

Quando se trata da civilização das nações, ou não há verdadeiro progresso, nem verdadeiro regresso, ou o que se chama progresso é muitas vezes regresso e vice-versa: porque os diferentes passos que uma nação pode dar na carreira da sua perfectibilidade política, em vez de formarem, como erradamente se pensa, uma linha recta cujas extremidades nunca se podem tocar, e onde cada ponto que se vai seguindo jamais pode tornar a cair no que se deixa, não formam senão uma linha curva, e até um verdadeiro círculo em que o mesmo espaço andado é sempre corrido de novo, enquanto há movimento. Por outras palavras: o andamento progressivo da civilização das nações há-de ser sempre o mesmo, porque é a consequência necessária da natureza do homem, que também não pode mudar. (…)
Assim, a marcha de qualquer povo que seja, na carreira da civilização, foi e há-de ser sempre a mesma, porque foi estabelecida de uma maneira irresistível pela mão omnipotente do Criador. São inúteis todos os esforços dos utopistas: quanto mais o reformador se esforçar por fazer caminhar a nação pela estrada da perfectibilidade, tanto mais, como Íxion da fábula, há-de correr atrás de si mesmo, e ir-se pouco a pouco aproximando daquele mesmíssimo ponto, de que parecia fugir. É m navegante que vai fazer uma viagem à roda do mundo: as léguas fogem detrás dele aos centos e aos milhares; mas quando ele supunha que se ia apartando infinitamente do ponto de donde tinha partido, ei-lo que, quando menos o pensa, torna a dar fundo no mesmíssimo porto donde tinha dado à vela. Eis aqui o que diz o Espírito Santo pela boca do Eclesiastes: «Que é o que há-de ser? O que foi. Que é o que se há-de fazer? O mesmo que já se fez.».
E este progresso de que falo é o único real e verdadeiro, porque é o progresso da natureza: e a sua marcha é essencialmente inevitável e fatalíssima. Talvez se lhe possa dar direcção, ou, pelo menos acelerar-lhe e retardar-lhe as crises; mas sempre há-de ser impossível embaraçar-lhe o andamento.
José da Gama e Castro (1841), O Novo Príncipe, Secção 2.ª, Capítulo IV.

sábado, 3 de outubro de 2020

Zeladores do livre pensamento (1.ª República) - Jaime Nogueira Pinto

Paralelamente ao poder republicano, mexiam-se os zeladores populares da causa do livre pensamento. Faziam-no segundo a técnica da «espontaneidade das massas»: bandos de carbonários e revolucionários civis, incluindo o habitual séquito de «patriotas» marginais popularmente conhecido por Formiga Branca ou por Formigas, assaltaram os jornais monárquicos e conservadores e destruíram, em Lisboa, as redacções do Diário Ilustrado, do Correio da Manhã e de O Liberal, «empastelando» os jornais («empastelar» era destruir a composição de chumbo da tipografia). No dia 1 de Fevereiro, em Coimbra, saquearam o CADC – Centro Académico da Democracia Cristã – e no Porto, aproveitando uma visita de Gomes Leal para uma conferência na Associação Católica, destruíram o jornal A Palavra e incendiaram o Círculo Católico. Gomes Leal era um poeta anticlerical convertido ao catolicismo e por isso alvo dilecto do rancor dos ex-correligionários. Contra estes desacatos protestavam indignados intelectuais republicanos, como Sampaio Bruno, pensador e director do Diário da Tarde.

A destruição de imagens de Cristo, da Virgem e dos santos tomou-se banal; as «almas do Purgatório» ou as «alminhas», pequenos retábulos de piedade popular disseminados pelas estradas e caminhos do país, também não escapavam à profanação e eram muitas vezes os próprios militares que se ocupavam da patriótica actividade.

Às igrejas eram arrombadas de noite e as imagens partidas à martelada ou atiradas ao chão. Havia que «educar o povo», mostrando-lhe que tais imagens, num tempo de Ciência e de Progresso, não passavam de «bonecos de pau». A sanha pedagógica de alguns livres pensadores apoiava-se também num infalível argumento estético, fruto de aturada peritagem: a total falta de «valor artístico» da maioria dos «bonecos de pau». O semanário católico A Voz da Verdade, em Junho de 1911, relata semelhantes actos de vandalismo nos concelhos do Porto, de Aveiro, de Lamego e de Ponte de Lima.

Eram também frequentes as acções contra os sacrários e os cálices, intencionalmente conspurcados. Em Lisboa, roubaram-nos da igreja paroquial de Santa Justa. Em Maio de 1911, foi a vez do Santuário de Nossa Senhora da Atalaia, em Aldeia Galega: a imagem da Virgem foi ali apeada e pendurada de cabeça para baixo. O Coração de Jesus, objecto de devoção dos fiéis, foi outro dos alvos preferenciais destes sacrilégios.

As autoridades não investigavam nem puniam estes actos, recebendo-os com tolerância ou limitando-se a repreendê-los com benevolência. A imprensa republicana procurava minimizá-los ou, quando mais violentos, sacrílegos e incontestáveis, atribuí-los a misteriosas provocações da reacção, que assim pretendia, maquiavelicamente, lançar o povo contra o regime.
Jaime Nogueira Pinto (2010). Nobre Povo: Os Anos da República, Capítulo 4.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Autoridade e conhecimento - Olavo de Carvalho

(...) Em seguida, ele mostra como duvidar de cada tipo de conhecimento. O princípio subjacente é que não deve confiar em nenhuma fonte que alguma vez já o enganou ou iludiu, ainda que só por uma vez. Descartes mostra, em primeiro lugar, que se pode duvidar de qualquer conhecimento que venha da autoridade. A razão disso é que especialistas divergem e não temos um modo seguro de chegar a uma decisão sobre qual deles está certo. Eis uma história que ilustra o problema. No início da Revolução Protestante, os católicos disseram que não havia maneira de discernir se Lutero e Calvino eram loucos ou não (uma suspeita que poderia ter a respeito de qualquer um que pensasse estar em contacto com Deus). Por outro lado, os católicos podiam saber a verdade, porque o Papa é infalível. Porém, os protestantes, rebeldes e ardilosos, não contestaram a infalibilidade papal; eles simplesmente fizeram a seguinte pergunta: Quem é o verdadeiro Papa? Não há maneira pela qual um ser humano falível possa dizer quem é Papa e quem não é – só o verdadeiro Papa sabe ao certo. E houve momentos em que mais de um cardeal afirmou ser o Papa. Isso dá conta do conhecimento baseado na autoridade. Ora, esta mesma história mostra também como duvidar de uma espécie muito influente de autoridade da cristandade ocidental, a da revelação. Talvez Deus tenha revelado algumas verdades para os patriarcas bíblicos, como Moisés, por exemplo. Mas como sabiam eles que aquele era Deus? E se era mesmo Deus, será que eles o entenderam? E se eles o entenderam, será que conseguiram escrever a mensagem direito? E se conseguiram escrevê-la direito, como saber se nós a entendemos? (...)

Tudo isto aqui está muito certo, com excepção de um ponto: se nada aceitarmos da autoridade, não temos acesso a esta discussão. Por exemplo: se alguém contesta que o Papa é Papa, ele o faz, certamente, com alguma autoridade. Ou seja: a possibilidade de colocarmos totalmente entre parêntesis qualquer autoridade é nula: só podemos contestar uma autoridade em nome de outra. Se há um entrechoque de autoridades, temos de reconhecer que uma delas é autoridade, ou nenhuma delas é e deve haver uma terceira. Se neutralizarmos completamente a ideia de autoridade, o pensamento torna-se inviável a partir desse momento, porque autoridade vem de autor; ou seja, é o poder do testemunho. Se eu colocar em dúvida todos os testemunhos — e notem bem que a autoridade em última análise se resume à ideia de testemunho —, então eu não posso ter sequer acesso aos dados do problema.  

Porque eu leio: os católicos disseram tal coisa; os protestantes disseram o contrário. E eu confio nesta informação; eu confio neste testemunho. E se alguém me disser: os católicos não disseram nada disso e nem os protestantes responderam, isto é tudo uma ilusão? Ou seja, se eu não tenho nenhuma confiança no testemunho, eu não tenho acesso a nenhum facto que eu não tenha testemunhado pessoalmente.

Isto quer dizer que podemos contestar algumas autoridades, mas não todas, senão o próprio relato do conflito entre as autoridades seria inacessível. Se alguém me diz que há um conflito entre católicos e protestantes, ou eu confio no que esta pessoa me está a dizer, ou eu vou ter de perguntar a cada católico e a cada protestante pessoalmente.  

Isto é: a crítica que Descartes faz à autoridade não é uma crítica radical. É uma crítica, por assim dizer, fingida. Ele contesta algumas autoridades, mas não todas. E quando ele contesta essas algumas, ele diz que coloca entre parêntesis todo o conhecimento advindo da realidade. Eu digo: como é que ele não percebeu isto? O homem daquela inteligência! O homem que inventou a geometria analítica! Então alguma coisa está errada. Eu não sei se ele mentiu ou se ele realmente não percebeu. Nos dois casos é muito grave.  

Mas, a ideia de que se pode contestar o conhecimento baseado na autoridade é uma ideia que hoje qualquer criança de escola tem, e isto impregnou-se na cabeça de quase toda a humanidade ocidental. E não há ninguém que diga: Sem a confiabilidade do testemunho foi tudo pelo ar. Alguma autoridade tem de existir e alguém tem de confiar em alguém; não é possível verificar tudo pessoalmente. Se eu duvido da autoridade dos Papas, é porque eu confio na autoridade do historiador que conta as burradas que os Papas fizeram. Se eu desconfio da autoridade de Lutero, é porque eu confio em quem me contou que Lutero é maluco. Se eu duvidar de todos, pronto, eu estou paralisado.  

Toda a crítica a uma autoridade é feita em nome de outra autoridade; toda a crítica a um testemunho é feita em nome de outro testemunho. Aristóteles já dizia: “Todo conhecimento se baseia em outro conhecimento”. Não há nenhum conhecimento que se baseie no nada. Passados mil e novecentos anos depois de Aristóteles, vem um indivíduo que diz que vai partir do zero. E as pessoas acreditam que ele partiu do zero. Este é o maior gesto de credulidade da história universal!  

“Ah, Descartes fez tábua rasa”. O quê? Claro que ele não fez: ele disse que fez. Ele está a representar a coisa, como se estivesse num teatro. Só que este teatro, como todo o teatro, tem uma função hipnótica: esquecemos que é um teatro e vivenciamos aquilo como se fosse realidade. Claro, sabendo que, depois de terminar o teatro, voltamos para casa e volta tudo ao normal. Só que nesse caso, não voltamos para casa: continuamos, pelos séculos dos séculos, a esquecer de fazer a pergunta que Descartes não fez. Se eu não acreditar em autoridade nenhuma, eu não posso colocar em causa nenhuma autoridade.  

Sim, eu posso duvidar de que Moisés fez isto ou aquilo, mas para eu chegar a duvidar disso, eu preciso ter acesso a um livro que diz que Moisés fez isto ou aquilo. E se alguém me traz informações que contradizem aquilo que Moisés diz que fez, eu vou ter de acreditar neste testemunho para poder colocar Moisés em dúvida. Isto significa que a autoridade e a confiança são elementos básicos de qualquer conhecimento humano. E Aristóteles já sabia disto. Entendem porque Schelling diz que, a partir desse momento, a filosofia voltou para um nível pueril? É por causa disto.

E, passados quatro séculos, um homem inteligente como esse biógrafo de René Descartes passa em cima dessas questões sem nem perceber que elas estão lá. Porque faz ele isso? Porque ele confia na autoridade do consenso. Todos dizem a mesma coisa a respeito de René Descartes, todos acreditam que Descartes colocou tudo em dúvida. Então quem sou eu para colocar em dúvida essa autoridade do consenso? Então o indivíduo afirma resolutamente a sua confiança cega na autoridade no mesmo instante em que diz que está a contestar toda e qualquer autoridade. Entendem porque às vezes a filosofia raia a estupidez pura e simples? E que às vezes ser um grande filósofo é apenas ter desenvolvido uma espécie requintada, sofisticada, de estupidez?  
Excerto da aula 120 do COF, 3 de Setembro de 2011. Adaptação para PT-PT.