segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Máquinas de conquista de poder - Marcello Caetano

Os partidos começaram por ser dominados por grandes personalidades, por notáveis que os dirigiam e que de certo modo os incarnavam, sobrepondo-se quase sempre às próprias ideologias. (...) Mas, a pouco e pouco, as formações partidárias foram apu­rando as suas construções ideológicas e os seus programas e o eleitor deixou de escolher um homem que o represen­tasse para passar a escolher uma determinada política.

Esta transformação, que parecia ir ao encontro duma maior promoção do eleitor (...) passou a ser um factor de enfra­quecimento das assembleias e um elemento de pulveri­zação duma sociedade. Em primeiro lugar, baixou visi­velmente a qualidade dos deputados, e compreende-se que assim tenha acontecido: as personalidades mais inte­ligentes e mais fortes têm dificuldade em se submeter à disciplina e à construção doutrinária do partido, que é, normalmente, um produto medíocre, ditado pelos seus quadros burocráticos. (...) Acontece ainda, como já tivemos ocasião de ver, que não só o cidadão normal, o eleitor comum, está quase sempre longe das ideologias e dos sistemas políticos, como, hoje, as próprias ideologias, quer pelo materialismo indiferente a qualquer forma de ideal que tomou conta das sociedades modernas, quer pelo seu próprio fra­casso, perderam grande parte da sua capacidade de mobi­lização. Em que se transformaram então os partidos políticos? Os partidos políticos transformaram-se - e isto parece-me grave - em máquinas eleitorais, em aparelhos potentes lançados à conquista do poder, com vantagens para aqueles que “tecnicamente” estão melhor apetre­chados sobre os que melhor poderiam realizar o bem comum.

As máquinas de “conquista do poder” são autênticas “máquinas de guerra” que, após cada campanha eleitoral - após cada “batalha” - deixam um país completamente ferido e retalhado, indefinidamente à procura da sua unidade perdida. As vantagens que uma certa competição poderia trazer ao progresso das instituições e da vida duma sociedade passam para último lugar, perante a preocupa­ção prioritária da conquista do poder, e as oposições que ficam nos parlamentos depressa esquecem as suas fun­ções de representação nacional, de vigilância do uso dos poderes em conformidade com as leis estabelecidas, de colaboração no poder legislativo para, segundo o seu objectivo, se transformarem nos mais poderosos elementos de obstrução da acção governativa do seu próprio país.

Como vê, não me parece que a representação nacio­nal, através de formações pluripartidárias, possa contri­buir para que as Assembleias sejam compostas por ele­mentos qualificados, independentes, dedicados à coisa pública e integrados num processo de realização do bem comum, porque a realidade partidária, com todas as suas exigências próprias, se intromete constantemente entre os deputados e a Nação.
Marcello Caetano (1973), Conversas com Marcello Caetano, de António Alçada Baptista.