sábado, 3 de outubro de 2020

Zeladores do livre pensamento (1.ª República) - Jaime Nogueira Pinto

Paralelamente ao poder republicano, mexiam-se os zeladores populares da causa do livre pensamento. Faziam-no segundo a técnica da «espontaneidade das massas»: bandos de carbonários e revolucionários civis, incluindo o habitual séquito de «patriotas» marginais popularmente conhecido por Formiga Branca ou por Formigas, assaltaram os jornais monárquicos e conservadores e destruíram, em Lisboa, as redacções do Diário Ilustrado, do Correio da Manhã e de O Liberal, «empastelando» os jornais («empastelar» era destruir a composição de chumbo da tipografia). No dia 1 de Fevereiro, em Coimbra, saquearam o CADC – Centro Académico da Democracia Cristã – e no Porto, aproveitando uma visita de Gomes Leal para uma conferência na Associação Católica, destruíram o jornal A Palavra e incendiaram o Círculo Católico. Gomes Leal era um poeta anticlerical convertido ao catolicismo e por isso alvo dilecto do rancor dos ex-correligionários. Contra estes desacatos protestavam indignados intelectuais republicanos, como Sampaio Bruno, pensador e director do Diário da Tarde.

A destruição de imagens de Cristo, da Virgem e dos santos tomou-se banal; as «almas do Purgatório» ou as «alminhas», pequenos retábulos de piedade popular disseminados pelas estradas e caminhos do país, também não escapavam à profanação e eram muitas vezes os próprios militares que se ocupavam da patriótica actividade.

Às igrejas eram arrombadas de noite e as imagens partidas à martelada ou atiradas ao chão. Havia que «educar o povo», mostrando-lhe que tais imagens, num tempo de Ciência e de Progresso, não passavam de «bonecos de pau». A sanha pedagógica de alguns livres pensadores apoiava-se também num infalível argumento estético, fruto de aturada peritagem: a total falta de «valor artístico» da maioria dos «bonecos de pau». O semanário católico A Voz da Verdade, em Junho de 1911, relata semelhantes actos de vandalismo nos concelhos do Porto, de Aveiro, de Lamego e de Ponte de Lima.

Eram também frequentes as acções contra os sacrários e os cálices, intencionalmente conspurcados. Em Lisboa, roubaram-nos da igreja paroquial de Santa Justa. Em Maio de 1911, foi a vez do Santuário de Nossa Senhora da Atalaia, em Aldeia Galega: a imagem da Virgem foi ali apeada e pendurada de cabeça para baixo. O Coração de Jesus, objecto de devoção dos fiéis, foi outro dos alvos preferenciais destes sacrilégios.

As autoridades não investigavam nem puniam estes actos, recebendo-os com tolerância ou limitando-se a repreendê-los com benevolência. A imprensa republicana procurava minimizá-los ou, quando mais violentos, sacrílegos e incontestáveis, atribuí-los a misteriosas provocações da reacção, que assim pretendia, maquiavelicamente, lançar o povo contra o regime.
Jaime Nogueira Pinto (2010). Nobre Povo: Os Anos da República, Capítulo 4.